ENTREVISTA COERENTE COM NOÉMIA PIZARRO

1. De que forma a resposta europeia ao recente aumento dos fluxos migratórios tem revelado divisões no seio da União Europeia? Tem comprometido a credibilidade e o futuro do próprio projeto europeu?

A resposta europeia à chamada “crise” migratória reflete, sem dúvida, divisões recentes na UE, mas acentuou também divisões que vêm de trás, de há longos anos. Basta ver que as razões do opt-out a Schengen (opção de não participação) pelo Reino Unido e a Irlanda estiveram diretamente ligadas a fatores relacionados com as respetivas políticas de imigração, bem como a uma visão mais soberanista sobre o projeto europeu. Por outro lado, o grande alargamento a leste de 2004 aumentou o número de Estados Membros claramente favoráveis a uma lógica intergovernamental e à delimitação na esfera nacional das decisões sobre política migratória. A isto soma-se a preponderância que, em anos recentes, governos e partidos nacional-populistas têm adquirido em alguns Estados Membros, sobretudo no chamado Grupo de Visegrado. Aqui, processos imperfeitos de transição democrática, razões económicas e histórico-culturais convergiram para o aparecimento dos discursos mais anti- -imigração a que assistimos neste período, como os dos líderes da Hungria e da Eslováquia. Paradoxalmente, trata-se dos países que menos refugiados receberam, pois fecharam-lhes as fronteiras logo no início do grande êxodo, recusando-se a cumprir a legislação e as decisões europeias sobre redistribuição dos migrantes, decisões que aliás chegaram a contestar junto do Tribunal de Justiça. Mas o Tribunal não lhes deu razão. Finalmente, o trajeto que os migrantes nos têm revelado nas rotas que traçam através da Europa dá-nos uma fratura muito preocupante, a fratura económica norte-sul, que anos e anos de políticas europeias de coesão não conseguiram verdadeiramente atenuar. Certamente que todas estas divisões comprometem o futuro do projeto europeu. É precisamente em momentos de crise que se vê a solidez de um projeto de integração política. E essa solidez foi comprometida. O perigo da “renacionalização” de políticas europeias, isto é, da devolução do poder político-legislativo aos Estados em políticas que, atualmente, são partilhadas entre eles e a UE – como muitos defendem que aconteça com a política de asilo – compromete seriamente o futuro político da UE, que tem como traço original, precisamente, o facto de ser um projeto político partilhado, com transferência de soberania para um poder supranacional em nome de valores comuns.

2. A atuação externa da União Europeia sobre as migrações tem em conta preocupações do desenvolvimento, ou limita-se mais às questões de segurança?

Em primeiro lugar, nunca houve verdadeiramente uma estratégia externa concertada da UE para as migrações, no sentido de uma “política externa europeia para as migrações”, que integrasse uma política de desenvolvimento que olhasse essa realidade. Só muito recentemente a UE vem tentando definir uma estratégia comum nas suas relações com os países de origem e trânsito de migrantes. No entanto, como é uma estratégia que nasce sob a pressão de uma crise, ela é inevitavelmente marcada por uma fortíssima dimensão de segurança. Até aqui, na minha opinião, as migrações sempre foram o “parente pobre” das prioridades da política europeia de ajuda ao desenvolvimento. E, mesmo não sendo um tema novo na comunidade do desenvolvimento, não deixa de ser preocupante que a questão do impacto global das migrações apenas agora dê entrada na “Agenda 2030”, com sete dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas a terem implicações relevantes para os migrantes.

Ao nível da UE, nunca tendo havido, como disse, verdadeiramente uma “estratégia”, a ação externa passou por várias fases e traduziu visões muito diferentes sobre a matéria, nem sempre congruentes entre si. Em 2011, por exemplo, a UE enuncia uma Abordagem Global para a Migração e a Mobilidade (AGMM) em que perspetiva o migrante como a figura central de um “processo de desenvolvimento com impacto nos dois polos do percurso migratório”. É um documento que vem da Direção Geral de Desenvolvimento (DG DEV) e dá origem às chamadas Parcerias para a Mobilidade, através das quais a UE financiou projetos para facilitar as remessas e apoiar projetos empresariais de migrantes nos países de origem. Mas esta ideia da migração como fator de desenvolvimento transnacional, com ganhos mútuos para o imigrante, para os países de origem e para os países de destino, nunca sairia do papel. A maior parte do financiamento que foi canalizado para aquelas parcerias acabaria por servir para a UE financiar ações de capacitação nos países de origem para o controlo de fronteiras e o combate à imigração ilegal. Vimos, assim, a ajuda ao desenvolvimento financiar a compra de barcos-patrulha para intercetar ilegais, a construção de centros de detenção ou a criação de bases de dados biométricas. Estas parcerias serviram sobretudo os interesses da UE, que depressa impôs aos países parceiros uma condicionalidade que, no caso das migrações, assume a forma do princípio «dar mais para receber mais» e que impõe aos países de origem mais colaboração na gestão da imigração dita ilegal, em troca de maior abertura por parte da Europa para conceder vistos de entrada (contudo, sempre na perspetiva de uma permanência temporária em território europeu). De modo que a “Abordagem Global” depressa cedeu à realpolitik. Nenhum líder europeu, nem mesmo na Comissão Europeia, teria hoje a coragem para defender uma abordagem teórica deste tipo, favorável às migrações. Pelo contrário, a UE assume neste momento uma postura completamente contrária à dessa época, desde logo no novo “Quadro de Parceria para as Migrações”, de 2016, em que claramente assume que o principal objetivo (imediato) da política para o desenvolvimento passa a ser “travar a imigração”. Simultaneamente, em todos os novos documentos sobre Schengen as migrações são agora definidas como uma ameaça, ao lado do terrorismo. E estas são as novas premissas oficiais em que assenta a política externa da UE para as migrações, de um primarismo difícil de admitir nesta fase da integração europeia. E de que sou, naturalmente, muito crítica. Mas estas preocupações de segurança na abordagem às migrações na ação externa não são apenas resultantes do contexto migratório atual. Elas resultam em grande medida da transposição para a política externa do que sempre foi uma marca forte da política interna para a imigração na UE, essa sim, uma política bem definida. Esta política caracteriza-se por um desequilíbrio sistémico entre as dimensões da admissão e as do afastamento de imigrantes na Europa. Na verdade, enquanto temos hoje ao nível europeu um quadro compreensivo de instrumentos dirigidos a travar a imigração e a promover a deportação de imigrantes, com sanções aos transportadores, restrições de vistos, proibição do regresso à Europa para quem decide sair e múltiplos acordos de readmissão com países terceiros vemos, depois, as política de integração restritas à competência exclusiva dos EM e, no que respeita à admissão de imigrantes, contam-se pelos dedos as vias legais de entrada em território europeu.

3. O discurso da cidadania e dos direitos dos imigrantes é efetivamente implementado?

O discurso da cidadania e dos direitos está em perigo, e não só para os migrantes. Muitos dos direitos de cidadania europeia – sobre os quais se fundou a União Europeia – são hoje alvo de restrições muito fortes. Falo sobretudo dos direitos de livre circulação, mas não só. E é importante que se diga isto, que se perceba que as consequências do discurso e da ação populista não atingem de forma negativa apenas os estrangeiros, atingem também os cidadãos europeus. Infelizmente, ninguém sairá desta “crise” com os seus direitos intocados. Afirmar isto não prejudica a importância que a segurança deve ter num Estado de direito, sendo, aliás, uma condição para a existência de um Estado de Direito. Simplesmente, a imigração não é uma ameaça. Nem um “fenómeno”. É um dado natural das sociedades humanas. A questão específica da cidadania dos migrantes coloca-se a partir do momento em que entram no território europeu e aqui vivem. Abre-se aqui de imediato uma divisão entre o estatuto do imigrante dito económico e o estatuto do requerente de asilo, pois enquanto que não existe um “direito à imigração” (ele depende de uma decisão absolutamente soberana dos Estados), já o direito a obter asilo na UE é um direito fundamental, plasmado na Carta dos Direitos Fundamentais, que exige naturalmente que estejam reunidas certas condições legais exigentes. Mas é um direito que é independente da vontade dos Estados. Enquanto os refugiados beneficiam de um estatuto próprio de direitos que deriva dos Tratados internacionais, os imigrantes apenas beneficiam daqueles que os Estados lhes decidem conceder. E, em matéria de direitos de imigrantes, a UE nunca conseguiu atuar, fê-lo apenas para reconhecer o direito ao reagrupamento familiar. Tudo o mais resulta da legislação interna dos Estados e é em regra provisório, o que introduz uma verdadeira manta de retalhos quando se tenta discernir qual o conjunto dos direitos dos imigrantes na Europa. Tudo isto mostra que o discurso da cidadania e dos direitos, que devia ser aqui absolutamente central, nunca entrou verdadeiramente na política migratória da UE. Mesmo na política de ajuda ao desenvolvimento, o valor do imigrante continua a ser medido principalmente pelo valor económico das remessas que ele envia para o país de origem e o que se vê no terreno é uma cooperação com países terceiros que só raramente promove reformas de longo prazo destinadas a ter impacto simultaneamente nos contextos do destino e de origem. Reformas que passem, por exemplo, pela criação de esquemas de portabilidade de direitos sociais, pela definição conjunta com o país de destino de medidas preparatórias prévias à partida do imigrante e adaptadas ao mercado de trabalho, ou pela criação de redes de serviços sociais nos dois polos do processo migratório.

4. Que medidas poderiam ser tomadas para melhorar a coerência da UE nesta matéria?

Para além das que acabo de enunciar, é urgente conceder aos imigrantes na UE um conjunto de direitos e deveres especificamente desenhados para a realidade e as especificidades da imigração e da mobilidade. Defendo a criação de um corpo de direitos para estrangeiros semelhante ao dos cidadãos europeus, que foi criado precisamente para transformar a livre circulação de pessoas num fator de desenvolvimento económico e político na Europa, o que efetivamente aconteceu. Reconhecer direitos ligados à imigração implica garantir, em primeiro lugar, que se abrem mais vias legais de entrada na Europa, nomeadamente, vistos para permitir a procura de trabalho; garantir que os migrantes podem transportar e reclamar no país de origem e de destino direitos sociais adquiridos ligados ao seu percurso laboral; garantir o direito de entrar e sair da União Europeia várias vezes, de formar a permitir a migração circular. A partir deste conjunto de direitos, a União deverá então reformular as suas políticas com novos atores, como os poderes locais e outros agentes locais (visto que é para as cidades que conflui o maior número de imigrantes) e com as comunidades da diáspora, que, apesar de uma participação crescente, são ainda atores subvalorizados no planeamento e decisão de alocação de fundos para o desenvolvimento. Parece-me que a União deverá também olhar para questões que têm ficado em segundo plano, como a compreensão sobre quais as medidas necessárias para atrair de novo e maximizar o contributo dos imigrantes para o desenvolvimento dos seus países de origem. Muitas destas medidas estão a funcionar com sucesso em países como a China, a Índia ou a Jamaica, com agências multissetoriais para apoiar a reintegração dos que voltam, mecanismos de facilitação da dupla cidadania, incentivos fiscais a empresários que regressam com projetos empresariais, ou programas específicos para chamar de volta os imigrantes mais qualificados.

Noémia Pizarro, Investigadora