Angola votou. Hora de cumprir. Entrevista a frei Júlio Candeeiro, diretor do Mosaiko – Instituto para a Cidadania

8 Out, 2017

O povo, mais do que nunca, reivindica condições de vida justas e dignas. Para frei Júlio Candeeiro, à frente do Mosaiko – Instituto para a Cidadania, em Angola, “a participação massiva das pessoas a que assistimos no dia dos votos é bem sinónimo dessa vontade dos angolanos de participar na construção do seu país, dando-lhe o melhor rumo possível”. Apesar do importante reconhecimento de um conjunto de Direitos Humanos na Constituição de Angola e da possibilidade de a invocar, “o principal desafio que o país enfrenta ao nível dos Direitos Humanos prende-se com a implementação na prática do muito que se tem escrito e com o funcionamento efetivo e real das instituições”. As organizações da sociedade civil têm feito, contudo, um notável esforço no sentido de se apoderarem dos instrumentos que têm à disposição para promover e defender os seus direitos fundamentais, desde a formação de organizações de base a grandes organizações condutoras de ações de lobby e advocacia a nível regional, continental e global. Em entrevista à e-NCONTROS, frei Júlio Candeeiro convida-nos a uma reflexão a partir da sua experiência no Mosaiko – há 20 anos ao serviço dos Direitos Humanos em Angola – e a partir da sua visão pessoal. Para ler. Pela paz.

e-NCONTROS – Quais os grandes desafios que Angola enfrenta hoje no que respeita aos Direitos Humanos?

Frei Júlio Candeeiro – Antes de mais, creio que ao nível formal um primeiro avanço digno de realce é o reconhecimento de um conjunto de Direitos Humanos (direitos fundamentais) na Constituição que obriga inclusive a que os tribunais, nas suas decisões, invoquem os tratados internacionais de proteção dos Direitos Humanos, ainda que as partes em litígio não façam referência a eles (art.º 26.º n.º 2 da CRA). E depois estão os órgãos, instituições e mecanismos criados no sentido de aplicar os Direitos Humanos plasmados na Constituição como, por exemplo, o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos; a Provedoria da Justiça, a 9ª Comissão da Assembleia Nacional, a Procuradoria-Geral da República e os tribunais.

Não obstante estes avanços, o principal desafio que Angola enfrenta ao nível dos Direitos Humanos prende-se com a implementação na prática do muito que se tem escrito e com o funcionamento efetivo e real das instituições. Observam-se alguns sinais de que Angola ainda está muito longe de pôr em prática o que ela se propõe ser: um Estado Democrático de Direito fundado na dignidade humana (Cf. Art.º 2.º, da CRA). Olhando para os desafios mais concretos, destacamos primeiro a questão do acesso à Justiça. Numa recente avaliação sobre acesso e uso dos meios de justiça feita pelo Mosaiko, a maioria dos participantes do estudo afirmou ter muitas dificuldades para efetuar um registo de nascimento e/ou obter um bilhete de identidade. Ora a falta destes documentos essenciais para a pessoa impedem o gozo de outros tantos direitos, sendo o principal deles o direito à nacionalidade. Segundo, veja-se a limitação do direito a participar na vida pública do país (Art.º 57.º CRA e art.º 24.ºda DUDH). Apesar de este direito ser reconhecido na Constituição, nos últimos anos, Angola regrediu neste setor, na medida em que a participação do cidadão, ao arrepio da Lei, assim como várias tentativas de associativismo não atreladas a partidos são impedidas ou severamente limitadas. Esta limitação manifesta-se na criação de mecanismos burocráticos que, por exemplo, levam a atribuição de estatutos de utilidade pública a organizações desconhecidas, quando outras como ADRA ou a AJPD não o conseguem. Para fechar o capítulo dos direitos civis e políticos, Angola continua a gerir mal e regrediu bastante no capítulo da garantia do direito de acesso à informação com limitações à expansão da Rádio Ecclesia, por exemplo, e a forma dura como o direito à manifestação tem sido constantemente repreendido.

Esta análise dos Direitos Humanos estende-se ao Capítulo dos Direitos Económicos Sociais e Culturais. Neste sentido, o acesso aos bens de primeira necessidade, a questão da proteção social, sobretudo dos antigos combatentes, são direitos de segunda geração que impõem desafios na sua realização no contexto de “crise da baixa do preço do petróleo”. A implementação de políticas públicas que favoreçam a criação de mais postos de trabalho, o acesso ao primeiro emprego, o acesso à habitação são hoje outros desafios enfrentados por Angola. Para além destes, estão também os desafios de concretização do direito à educação, à saúde e à alimentação saudável e ao meio ambiente (DUDH, art.º 26).

Como consequência, Angola ocupa a modesta 150ª posição numa lista de 188 países; e um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,533, ajustado a desigualdade de 37.0, conforme o Relatório de Desenvolvimento do PNUD 2016.

 

e-NCONTROS – Como tem a sociedade civil vindo a protagonizar a defesa dos seus direitos?

Frei Júlio Candeeiro – Hoje, em Angola, a sociedade civil tem dinâmicas específicas. Temos, no panorama sociopolítico de Angola, um conjunto de organizações da sociedade civil cujo papel é inquestionável. Um olhar sobre a sociedade civil permite ver que entre elas podemos identificar três estratégias fundamentais: uma de alinhamento claro e constante ao partido no poder, assumindo a função de defender a situação sem dar espaço à crítica. Para este conjunto de organizações da sociedade civil, no País está tudo bem e quem critica está contra o país. Um segundo grupo de organizações posiciona-se numa postura do contra. Para estas organizações da sociedade civil, o País está mal e serve seja o que for para deitar abaixo. Existe, por fim, um terceiro grupo de organizações da sociedade civil que se lança na ótica de construção de pontes, assumindo e colaborando com todos para a construção de uma sociedade mais inclusiva, ou seja, não assumindo à partida uma posição a favor ou contra A ou B, mas promovendo e defendendo a construção de Angola com o esforço e o contributo de todos e de cada um/a, combatendo, por esse facto, os extremos.

Dito isto, vale a pena notar que as Organizações da Sociedade Civil (OSC) realizam uma série de ações visando aumentar a consciência cívica e política dos cidadãos, com projetos e campanhas de educação, tais como palestras, conferências, workshops, publicações e criação de programas de rádio. Por outro lado, a sociedade civil realiza também ações de denúncia e de defesa em casos de situação de violação dos Direitos Humanos. Várias organizações acompanham em tribunais nacionais e internacionais casos de violação de Direitos Humanos. Outras ainda destacam-se no trabalho de mediação e conciliação, no mesmo âmbito. As OSC realizam, igualmente, um enorme trabalho de estudos e pesquisas sobre os mais variados assuntos ligados aos Direitos Humanos. Neste capítulo, organizações como o Mosaiko, a AJPD, a ADRA e a DW, só para citar alguns exemplos, são uma referência. Não posso deixar de mencionar o facto de que organizações como a OMUNGA, a AJPD, a Associação Mãos Livres e a Associação SOS Habitat possuem estatutos de observador junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Por fim, a sociedade civil realiza acções de lobby e advocacia junto de organizações regionais, continentais e globais. Nesta área, as organizações da sociedade civil elaboram relatórios sobre Direitos Humanos e submetem-nos aos mecanismos específicos, tanto a nível das redes e plataformas regionais, como a nível continental com a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e, no contexto global, junto da Conselho dos Direitos Humanos da ONU. Este trabalho de lobby é feito principalmente no âmbito do trabalho em rede pelas organizações-membro do Grupo de Trabalho de Monitoria dos Direitos Humanos. Este grupo de OSC dedica-se a campanhas de defesa e promoção dos Direitos Humanos, a tomadas de posição sobre casos mais gritantes de que se tenha conhecimento e à redação de relatórios paralelos para mecanismos e instituições internacionais. Não é justo terminar este ponto sem uma referência à atitude de abertura do antigo Ministro da Justiça e dos Direitos Humanos e da sua equipa na forma como abordaram alguns assuntos ligados às OSC e aos Direitos Humanos.

 

e-NCONTROS – A que avanços assistimos neste sentido?

Frei Júlio Candeeiro – As evoluções a que fiz referência na primeira questão colocada refletem-se e são, em parte, fruto desta tríplice estratégia que notamos no seio das Organizações da Sociedade Civil (OSC). Ou seja, os ganhos a nível formal continuam sendo as principais referências a assinalar nos últimos anos. Não obstante isso, um dos maiores avanços a que podemos fazer referência é o aumento em número e o fortalecimento das chamadas organizações de base (Grupos Locais de Direitos Humanos e as cooperações agrícolas) que são parceiras privilegiadas para várias das chamadas grandes OSC. Um outro avanço a que assistimos é o aparecimento de vários grupos de pressão que – não sendo organizações da sociedade civil no sentido clássico da palavra – desafiam o Estado, as OSC e a sociedade em geral a lidar com estruturas tão versáteis, como por exemplo, os chamados movimentos revolucionários. Devemos também fazer menção ao surgimento na sociedade angolana de novos atores, como verdadeiros valores adicionados no caminho da construção de uma Angola mais respeitadora dos Direitos Humanos. Entre as várias organizações a que se pode fazer referência, referimo-nos ao Grupo de Trabalho de Monitoria dos DH, à Associação Handeka e à Associação Ame Naame Omunu. Três novos atores a enriquecerem o panorama das OSC em Angola.

Para terminar, o aumento em quantidade e qualidade de reclamações vindas dos cidadãos e o envolvimento destes no processo eleitoral são alguns dos avanços que vale a pena notar e que são, sem sombra de dúvidas, resultado do trabalho enorme que tem sido realizado pelas OSC.

 

e-NCONTROS – No quadro das recentes eleições angolanas, que expetativas se vivem?

Frei Júlio Candeeiro – A diversidade de expetativas reflete a multiplicidade e a diversidade de contextos socioeconómicos, políticos e culturais que caracterizam Angola. As recentes eleições gerais realizadas a 23 de agosto de 2017 revelaram-se como sendo um dos momentos de extrema importância no gozo do direito a participar na vida pública do país. De uma forma geral e, mesmo sem grandes estudos, a grande maioria dos angolanos acreditou que o seu voto tem força e que ele é um instrumento de exercício do poder e um instrumento de transformação. A participação massiva das pessoas a que assistimos no dia dos votos é bem sinónimo dessa vontade dos angolanos de participar na construção do seu país, dando-lhe o melhor rumo possível.

Sem medo de errar, penso que a grande expetativa de muitos angolanos é a de que acabem ou reduzam significativamente alguns dos principais problemas estruturantes que ainda vivemos como país, sendo que alguns me parecem mais urgentes. A valorização e reforço das instituições como entidades acima dos líderes. Max Weber defende a ideia da institucionalização do Carisma de modo que a ausência do líder não seja sinónimo de morte das instituições. Neste sentido, os angolanos esperam que os servidores públicos, os ministérios e instituições de tutela recebam mandatos e meios para resolver os assuntos sob sua responsabilidade com profissionalismo.

A despartidarização das instituições do Estado, sobretudo da mídia pública, assim como a independência e aperfeiçoamento a todos os níveis de instituições-chave no setor da administração da Justiça (Serviços de Investigação Criminal, PGR, Tribunais, Polícias, etc.) são outros dos desafios mais urgentes que Angola terá de ultrapassar nos próximos tempos. Também o investimento na educação e na saúde, na proteção social e no saneamento básico. É indiscutível a importância que estes setores têm na vida de qualquer país. No setor da educação, por exemplo, espera-se que o próximo executivo invista prioritariamente na educação pré-primária e primária mais do que no ensino superior. Espera-se também que o processo de licenciamento das instituições de ensino superior seja mais rigoroso.

Há que igualmente melhorar o acesso à Justiça de modo a garantir uma sociedade menos desigual e mais segura, uma prioridade desde sempre em Angola. O novo executivo deve esforçar-se por garantir ao setor da Justiça os meios humanos, técnicos e materiais de que ela precisa para garantir um Estado Democrático de Direito. Para tal, deve-se começar pela básica e necessária realização do registo de nascimento, obtenção do Bilhete de Identidade e fiabilidade do registo criminal. Acabar com a fome e com a pobreza que ainda assolam uma parte considerável da nossa gente…

Um último desafio a que gostaria de fazer face é a corrupção e o nepotismo reconhecidos por todos como alguns dos principais males que afetam a sociedade, bem como ao desafio das autarquias, das quais se espera poderem tornar-se a principal ferramenta de redução das desigualdades e assimetrias entre os vários pontos e regiões do País.

Créditos foto: MOSAIKO

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