Somos todos um, somos Missão, levamos Jesus (e a FEC) no coração

6 Jan, 2020

«É a procura de algo mais que nos leva ao terreno, à Igreja que age e não apenas à igreja que ora, que apela.

Ao início não passa de uma obrigação – a FEC (Fundação para a Fé e Cooperação)  é-nos apresentada como uma formação obrigatória para irmos em missão. O medo que uma formação destas nos retirasse o desafio da descoberta e adaptação preocupou-me, mas a vontade de pertencer a esta família que age e não se deixa ficar pelo mero dizer e apelar, impulsionou-me a aceitar o desafio. Afinal de contas tinha entrado para me doar à causa e, se este é o caminho, vamos a ele. 

No meu testemunho, escolho uma a duas palavras para descrever cada uma das sessões, juntamente com uma breve exposição:

PERSPECTIVA

Um misto de adrenalina, de entusiasmo e também de algum receio do que possa vir dali, leva-me à primeira sessão – com um pé atrás, afinal de contas não sei bem o que esperar. Voluntariado Missionário e Espiritualidade era o tema, que, para mim, abre o caminho da melhor forma – apresenta-nos uma perspectiva inclusiva, abrangente e fascinante desta herança que nos foi entregue no nosso Baptismo. Este desmontar de hábitos,e rituais aperfeiçoados ao longo dos tempos, e também de alguns preconceitos, de uma forma global e também local. A redução de toda uma religião à sua atomicidade, à sua forma mais simples – a Misericórdia. A Misericórdia, como amor materno, incondicional, um amor que aceita, paciente, orientador e inclusivo. Foi o concretizar de um sonho que, indo à Eucaristia (quase) todos os domingos, me era transmitido, mas difícil de ver na sua totalidade aqui fora.  A exposição, a forma como foram abordadas as encíclicas dos Papas.  A força da Fé é real, a forma como a interpretamos faz toda a diferença na forma como a transmitimos e aplicamos no nosso dia-a-dia. A felicidade é um caminho e não apenas uma meta.

 

CHOQUE

Depois da descoberta e da emoção provocada pela primeira sessão – sim – quero dar mais um passo neste sentido, nesta felicidade prometida. A ansiedade e a expectativa da segunda sessão é muito grande, não nos deixa quietos, ansiamos pela próxima descoberta. E nesta sessão chega o choque. O projecto planeado, a preparação do mesmo, o sonho versus a realidade. As influências humanas, políticas, financeiras, geográficas e climatéricas. Como isto afecta os nossos projectos, objectivos, os nossos sonhos. O confronto da nossa perspectiva com as diferentes realidades, os nossos “óculos” vs os “óculos” de quem está no terreno e vê directamente e sem filtros, e ainda quem mais do que vê: sente. Este confronto,  a preparação para o que não conseguimos controlar, e acima de tudo, de que não estamos sozinhos, e que também temos a perspectiva dos outros. No fim, depois do testemunho, o filme: A introdução ao brilho nos olhos, o encanto e o choque final. As decisões que nunca ninguém nos vai poder dizer se foram as certas a não ser nós mesmos, e às vezes, só Deus.

TESTEMUNHO

A emoção transmitida e o choque da última sessão tiveram o seu efeito, durante o período que separa uma sessão e outra, houve tempo para tudo, até ter a nossa confiança abalada para o desafio a que nos propusemos. Claro que ninguém quer chegar a esse ponto – ao das decisões que tiveram de ser tomadas no fim do filme –  e, sim, é-nos alertado que hoje, em princípio, não são enviados missionários para países em instabilidade política, mas aquele choque foi sentido, mostra-nos que nem tudo é um sonho e, se calhar, até nos ajuda a ver os testemunhos seguintes com “outros óculos”. Aqui vamos ver como é estar no terreno e integrar-nos, inculturar – chegámos à terceira sessão. A sequência parece-me toda ela encaixar na perfeição, a Misericórdia, os locais para onde vamos, projectos planeados vs reais e agora a realidade cultural de um lugar, aldeia, povo ou nação. 

Nós não vamos apenas integrar projectos, não vamos somente promover a Misericórdia de Cristo, vamos integrar-nos com o povo e o local, e vamos inculturar. Em mais do que meras palestras é complementado pelos testemunhos de quem, mais do que ser confrontado com as diferenças, sentiu-as, analisou-as e adaptou-se a elas. Para mim, os exemplos da troca das cinzas por água na cerimónia de imposição das cinzas é o exemplo mais fácil de referir. Mas não consigo deixar de referir outros testemunhos, como a adaptação da nossa mística à dos índios na floresta amazónica, onde de alguma forma se conseguiu encaixar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e também a apresentação das parábolas descritas na Bíblia a uma assembleia de muçulmanos. As diferenças culturais e religiosas, a prática da Misericórdia, capaz de se adaptar a qualquer cultura é então evidenciada. Inculturação, um termo que aprendi, e que no final,promove a união pelos pontos comuns, mais que ao afastamento pelas diferenças. Nesta sessão é-nos apresentada a partilha do alimento que é transversal a todos, o alimento do espírito. 

 

FAMÍLIA

Eu sei que o tema principal desta sessão não era a Família, mas foi nesta que me senti família. A transição para a quarta sessão era feita ao som da canção “Tu és a Água Viva”, apresentada na última Eucaristia e ajudando a prolongar a sessão. Era Domingo de Ramos. Como era hábito, dividíamos os elementos do VP (Voluntariado Passionista) pelos carros mínimos necessários para as boleias, e sim, eu era quase sempre um elemento “fora do baralho” que, normalmente fazia o trajecto de Lisboa, e eles de Santa Maria Feira, mas sempre me sentia integrado. O caminho para sessão já era de festa. A alegria contagiante que se vivia nas viagens, as chamadas em conferência e as vídeo chamadas durante as viagens de carro, espelhavam a alegria contagiante e a nossa motivação na hora de voltar à FEC. Se calhar, já esta viagem influenciava a forma como viria a encarar e como senti esta 4ª sessão. Aqui fomos levados a pensar sobre o impacto pessoal que esperamos ter na missão e o impacto que esperamos que a missão tenha em nós, a descoberta da forma como nos posicionamos e interpretamos o que nos rodeia. Vamos conhecer melhor quem nos rodeia, e apresentar quem não conhecemos. As dinâmicas utilizadas na formação funcionaram, e o “à vontade” dos elementos da 4ª FEC revelou-se. A partilha dos momentos de dança demonstrou isso. A alegria era contagiante. O colocar-se no papel do outro, a forma como interpretamos e apresentamos soluções diferentes para os mesmos desafios. As danças e a apresentação de um desafio em grupo foi difícil para mim, mas superado. Ver como os outros se integravam e eram integrados nos diferentes grupos, apesar das suas diferenças, foi preenchedor. Sentir o próximo e perceber a sua humanidade, que me pareceu tão fácil nos outros e menos fácil para mim no desafio de grupo, fez-me sentir também a minha fragilidade. Para complementar o espírito de união que se vinha a fortalecer das sessões anteriores, é-nos apresentada uma canção com aquilo que desejamos a cada um de nós, e cada um dos presentes:.”Eu te desejo”. Palavras, para quê? 

EXPERIÊNCIA E MEDITAÇÃO
Ao som desta canção voltamos à espera. Esta com um bocadinho de tristeza, pois aproximava-se a última sessão e, com ela, a certeza de que o grupo não seria tão grande, devido às missões a que alguns já tinham sido chamados. A viagem desta vez era até Aveiro, onde nos seria apresentada a sessão sobre desenvolvimento e dádiva cristã – era a 5ª sessão. Aqui fomos convidados a experimentar. Escolhida a cobaia para a experiência, inicia-se um caminho às cegas. Como agir perante alguém que acabou de chegar a casa depois de uma cirurgia e perdeu a visão. A interpretação e abordagem que cada um faz e o resultado da mesma. Como potenciar o desenvolvimento e a integração de quem, de um momento para o outro, se vê numa situação extrema. Perante a mesma dificuldade, todos temos ideias e soluções diferentes a experimentar. Somos confrontados com o facto de o alvo da nossa ajuda, também tem capacidades. Afinal o que é o desenvolvimento humano? Cada um é convidado a expressar o que para si é promover integralmente a pessoa, autonomia e participação, encarnação, inserção e reciprocidade. Aqui somos confrontados com os efeitos de uma ajuda não contextualizada – o facto de ajudarmos sem estudar a comunidade que queremos ajudar – e que pode levar a uma dependência maior, em vez de promover o desenvolvimento autónomo. O exemplo dos ovos no Ruanda foi aqui apresentado e uma evidência da teoria discutida.
Perante os desafios constantes a que seremos sujeitos, somos orientados e convidados a meditar sobre o que nos ensina Jesus. Somos convidados a descobrir formas de abrir a porta do nosso coração a Ele e deixar que nos inspire. As formas, essas podem ir das mais formais, às mais informais.
Esta era a última sessão teórica, e por isso, fomos informados que seríamos enviados em missão. O facto de não existirem vagas para todos na sessão prática, fez com que se antecipasse o envio. Simples mas cheio de significado, e a certeza de que não estaremos sós. Somos muitos, e seremos enviados como apóstolos para todos os cantos do mundo.
MISSÃO

Bem-vindos à casa de saúde das irmãs hospitaleiras! O sorriso expande-se. Sente-se o conforto no peito, ao ver aquelas caras que nos acompanharam na nossa caminhada até aqui. O reencontro é feito ao jantar. Relembram-se os ausentes e episódios do trilho já percorrido. Actualizam-se as novidades. Uma breve apresentação do que é a casa e como se iniciou, é feita a seguir ao jantar. Na primeira manhã, somos apresentados a cada unidade, como se nos estivessem simplesmente, “a dar a conhecer os cantos à casa”. A primeira impressão, apesar de um bocadinho apreensiva da minha parte, foi positiva. Os pacientes que vamos encontrando no caminho parecem que nos vão contextualizando. Nas diferentes unidades, vamos encontrando uma realidade assustadora, mas parcialmente conhecida – a prostração, a espera de um fim que é certo, o desligar gradual do cérebro e da realidade tal e qual como a conhecemos. A memória dos meus avós, a batalha travada por eles, que os transformou em verdadeiros guerreiros aos meus olhos, faz-me sentir que estou num campo de batalha. Fico um bocadinho nervoso no início, o receio de ter algum choque e não ser natural com eles preocupa-me. Ali, por detrás daquele olhar, e daquela expressão quase que imóvel sem transmitir emoção, está alguém. Alguém que, apesar de ver as mesmas coisas que eu, interpreta de forma diferente. Alguém que se fecha no seu mundo, se calhar como defesa, ou como forma de passar os seus dias. Claro que não eram todos assim, havia os que nos perseguiam e queriam a nossa companhia. Haviam os que nos abraçavam e beijavam, e até de alguma forma ficavam encantados connosco, mesmo sem nos conhecerem.

Não estamos habituados a isto. Eu não. Alguns de nós pareciam mais à vontade, outros mais constrangidos e outros a querer fugir – ao início, confesso que fui um deles. Na altura não estava habituado a lidar com esta realidade, mas hoje, ao recordar todo o carinho, partilho da mesma vontade do abraço e todo o carinho sentido nesta missão. Seguramente estaria mais tranquilo. Ao fim do almoço, são definidas as equipas e unidades pelas quais serão distribuídas. Equipas de 2, como dizia o evangelho. Assim, se um cair, o outro ajuda a levantar.

 

Chegado à unidade a adrenalina sobe mais um bocadinho! Olho para a minha colega de missão, que aparentava igualmente indagar-se sobre o que fazer. À minha volta, a indiferença de alguns, absortos, outros se calhar, sem consciência da nossa presença, e ainda, o olhar perseguidor de alguns, como que na espera de que fizéssemos alguma coisa, aumentava a pressão por mim sentida. A possibilidade de ocupar-me a fazer alguma coisa que ajudasse os enfermeiros, em vez de ir ao encontro das pessoas que se encontravam sentadas e com dificuldades, invadiu-me. Entro num conflito interno entre a emoção e a razão. A expansão emotiva, quase a passar à necessidade da fuga, foi a campainha que chamou a razão ao controlo. É para nos colocarmos em situações novas e aprendermos a gerir emoções e situações que aqui estamos. Para que, perante a adversidade consigamos fazer a diferença pela positiva. Darmos o melhor de nós, seja lá o que isso for nestas circunstâncias. Temos de descobrir. Respirar fundo, procurar um ponto de equilíbrio. Abordar os enfermeiros sobre a possibilidade de jogar com o pessoal na sala foi a solução encontrada. A missão do VP na casa dos pobres em Coimbra, fazia o seu efeito. Vamos contactando com a realidade gradualmente. Esse contacto, por incrível que pareça, foi-me deixando mais confortável. Permitia que fosse conhecendo as diferentes realidades.

 

Tornaria este texto demasiado longo descrever todas as evoluções sofridas por mim, todas as técnicas que aprendi para auxiliar na convivência, na alimentação, todas as histórias partilhadas. A forma como tentamos reagir e responder com sentido, num contexto que vai mudando a cada resposta.

 

É difícil dar de comer a alguém que não reage aos comentários sobre futebol, sobre o tempo. Dar de comer a alguém que, por mais que nos esforcemos, não fala. Mas aos poucos vamos descobrindo os caminhos possíveis. Vemos que a reacção muda quando vamos dizendo o que vai na colher, ou de repente, quando dizemos que a água tem medicação e precisamos da ajuda para que a beba toda. Apercebemo-nos que afinal está mesmo ali alguém. Quando interagimos com a família tudo toma uma forma diferente. O conhecimento deles sobre a pessoa, pode ajudar significativamente. Num episódio, ao comunicar à esposa que o seu marido era um bom garfo e muito cooperante, apesar de não falar ou expressar, percebe-se o sorriso dela. Falei que a interacção era pouca mas que nunca se sabia. Menciona que sente muito a falta dele e, como que se lembrasse subitamente, comenta que ele reage à música de namoro dos dois. Infelizmente não consegue ouvir a música com a frequência desejada. Fez-se luz na minha mente. Tinha de tentar proporcionar esse momento. No fundo sou mais um ali, posso ajudar. Tratei de perguntar qual era a música. Procurei-a, mostrei-lhe. Depois de confirmada, encostei o som ao ouvido, para que não se ouvisse para além daquele pequeno círculo. A figura prostrada e cansada, começa a erguer a cabeça, como se largasse um fardo pesado. Os olhos claros procuram alguém – a esposa diante dele. As mãos, antes pousadas uma na outra, apertam-se. As lágrimas enchem os olhos dela. Tentei secar os meus num pestanejar rápido, para que não perdesse nenhum momento. Ouve-se o nome dele. Ela chamava-o, como que a pedir que ele dissesse alguma coisa. Com uma voz triste, comenta que ele não faz mais do que isto. E que gostaria muito de voltar a dançar com ele. Disse-lhe que voltaria à tarde e tentaria de alguma forma que ela dançasse com ele. Infelizmente, durante o resto da missão, não voltei a ver os dois juntos, para ajudar a satisfazer este sonho à esposa, e se calhar o dele também. Mas no fundo, enquanto lá estive, fiz o meu melhor e procuro o momento para lá voltar e tentar novamente.

 

Foi na vinda embora que me apercebi, juntamente com a partilha da minha colega de missão, que nós estamos ali mesmo para darmos mais tempo a quem precisa. E com este tempo, descobrirmos e ajudarmos estas pessoas a serem felizes. Envelhecer não é esperar, ou pelo menos não deveria ser. Dificilmente estas pessoas escolheram este destino. Descobrir uma forma de comunicar, sentir, de fazer sentir, de os fazer sorrir. Pode ser frustrante, mas ao mesmo tempo motivador e preenchedor. Nós somos o tempo extra, somos ainda mais atenção a cada uma das pessoas ali presentes. Sim, não precisamos de dar a comida a correr, de deixar os guardanapos sujos com a comida que cai nesta pressa de querer chegar a toda a gente.
Não consigo descrever o que sinto sobre tudo isto. Acho que não há nada melhor do que um coração do tamanho do Mundo para descrever as irmãs e aquela casa. Um coração enorme, aberto, acolhedor, companheiro e reconfortante. Se durante toda a minha vida ouvi falar em louvar a Deus, nunca fez tanto sentido como neste contexto. Agradecer por existirem corações enormes como os delas, que, na sua humanidade, disseram sim ao desafio e abriram os braços para acolher, orientar e transformar o abandono, o desprezo, a rejeição, em carinho, em atenção, em amor, em hospitalidade. Obrigado.

 

FEC

Assim chegaria ao fim do meu testemunho, mas falar apenas das sessões sem dizer o que para mim ficou da FEC, deixaria este artigo incompleto. A FEC não é só isto. A FEC é conhecer novos amigos. Amigos com diferenças, maiores ou menores, mas com um grande coração e uma grande vontade de se doar que os une. São os sorrisos partilhados, os confrontos de personalidades e as adaptações em prole de um objectivo comum. Os convívios pós formação, as “reuniões de condomínio”, são o fortalecer dos laços, são os sorrisos, os desabafos. Os almoços partilhados, as caminhadas antes de ir dormir, as visitas ao santuário e algumas fotos de pessoal a dormir. São os crepes, os copos no bar, as gargalhadas, a espuma do cabelo na testa ao acordar. As corridas e as danças com a cadeira, é o “segue a minha voz” na cegueira premeditada. São os jogos de futebol na esplanada. É o brinde à amizade, com o porto que é tão nosso. É o circulo de abraços que suportam os nossos braços, e aliviam a nossa cruz. É todo um espírito que seduz. “Quando ajudas um dos meus irmãos, me estás a ajudar a Mim“: A forma mais subtil de ser Deus, na força e na fraqueza, e de continuar esta corrente, que se quer sem fim.

A FEC também é toda uma equipa que trabalha, dias e noites sem fim. Que trabalha para nós, para que estejamos preparados, para que não nos sintamos sós. Somos todos um, somos Missão, levamos Jesus (e a FEC) no coração.

Um enorme Obrigado a todos, que com dedicação, entrega e coração, tornam este Deus que nos une, num Deus presente, num Deus real.»

Testemunho: Carlos Calisto, Voluntariado Passionista