Paulino Paissone 

Paulino Paissone é produtor agrícola e supervisor das Escolinhas Comunitárias do Niassa, que acolhe mais de mil crianças. Vive em Muheia, Cuamba, Moçambique, onde a energia elétrica ainda não chegou. Luta todos os dias, sem apoios, contra a imprevisibilidade das mudanças climáticas e das pragas

“É possível favorecer a melhoria agrícola de regiões pobres, através de investimentos em infraestruturas rurais, na organização do mercado local ou nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de técnicas agrícolas sustentáveis.”

(LS 180)

Cuamba é o centro económico da província do Niassa. O que a faz mover é o algodão e o tabaco. O algodão constitui um quinto das exportações agrícolas do país e Cuamba reclama ser a sua capital. O clima a isso ajuda, sendo bastante mais quente e seco do que no resto da província. Cuamba é uma cidade com vários serviços, algumas ruas pavimentadas, casas do tempo colonial, um mercado movimentado e as empresas da indústria algodoeira e tabaqueira, com as suas fábricas. Orgulha-se também da sua Faculdade de Agronomia. É atravessada pela linha férrea, recentemente recuperada, que veio desenvolver a região. Em qualquer ponto da cidade, vemos montanhas e inselbergs, que caracterizam esta paisagem. Em redor, perfilam-se as aldeias, mais ou menos junto às estradas de terra batida, onde habitam a maior parte dos produtores de algodão e tabaco. Por estas estradas fora, veem-se ocasionalmente tanques de guerra abandonados desde a Guerra Civil.

Fomos até a Muheia, uma destas aldeias, para conhecer Paulino Paissone, uma figura incontornável na região. É coordenador local do projeto das Escolinhas Comunitárias do Niassa, o que já lhe valeu a aparição num documentário sobre as mesmas: O Dia de Amanhã, produzido pela Associação Ao Norte. Estas escolinhas, da Diocese de Lichinga, apoiadas pela FEC e, até muito recentemente, pelos Leigos para o Desenvolvimento, acolhem no total mais de mil crianças em idade pré-escolar. No entanto, Paulino Passione descreve-se, em primeiro lugar, como produtor agrícola. Afinal, é o seu principal sustento. Paulino, como muitos produtores de Cuamba, cultiva algodão para venda. É o rendimento mais significativo para a família. Vende-o a uma grande sociedade algodoeira local, já centenária e “de confiança”, que aposta na modernização dos produtores: dela recebem não só as sementes, o kit com os insumos, pesticidas e equipamento, mas também telemóveis para poderem comunicar com os técnicos da empresa. Na casa de Paulino, como na maior parte das casas moçambicanas, não há acesso à rede elétrica, por isso, comprou um pequeno painel solar no mercado para carregá-lo. Leva-o com ele para a sua machamba.

Paulino e a família têm cerca de dois hectares disponíveis a quarenta minutos a pé de casa, onde cultivam não só algodão, mas também o essencial para alimentar a família: milho e mapira, sobretudo. Costuma deslocar-se de mota e segue todos os dias, com a enxada atrás, por volta das quatro da manhã. Trabalha com a mulher, Otília, até à hora do almoço e continua sozinho na labuta até às cinco e meia da tarde. Otília gostava de ter um trator, mas não há, por enquanto, meios de mecanização. Felizmente, Paulino conhece os benefícios da rotatividade de culturas. Quando visitámos a sua machamba, em outubro de 2019, Paulino ia semear milho onde antes cultivava algodão, e este passaria para o lugar da mapira, ou sorgo, um cereal muito comum na região. Estava a começar a limpeza da terra, para em dezembro dar início às sementeiras. No entanto, já não sente tanta segurança como antes: os calendários são cada vez mais incertos com a irregularidade das chuvas e já não compreende bem “o programa de Deus”. Tem consciência do que são as “mudanças climáticas” e considera-as “um problema sério, que sempre surpreende.” Conta que recentemente têm surgido chuvas mais intensas do que o habitual ou, pelo contrário, meses secos a fio na estação típica das chuvas, o que obriga cada vez mais “o machambeiro a correr”. As sementeiras implicam este trabalho árduo de limpeza do terreno e estas “surpresas” podem arruinar o esforço.

De facto, o relatório do McKinsey Global Institute dá conta de que, ao contrário da cultura do algodão, que poderá torar-se mais estável com temperaturas mais altas, a cultura do milho, poderá sofrer de maior volatilidade com as alterações climáticas. Para além da mandioca e do arroz, o milho é o alimento base do moçambicano. Sem milho, não há vida e quanto ao algodão, apesar do prognóstico, Paulino Paissone conta-nos que “houve fracasso nestes anos, por causa das chuvas intensas”. Normalmente, consegue acumular 45 sacos, ultimamente nem tanto. O milho, que tanto o preocupa, não só sofre com a seca e com as chuvas intensas, como enfrenta uma nova praga: a lagarta do funil de milho. Esta é uma praga proveniente das Américas e que, segundo a FAO, chegou em 2017 a África, por razões incertas. Os pesticidas oferecidos pela sociedade algodoeira não têm sido suficientes para protegê-lo. A praga alastrou-se tanto e o problema é tão grave que a FAO lançou em dezembro de 2019 um programa de três anos para dar apoio aos agricultores africanos nesta frente, incluindo em Moçambique, mas ainda não chegou a Muheia.

“Nenhum camponês quer ficar reduzido à geração de pobreza.”

O programa da FAO inclui uma componente de formação, com as Escolas da Machamba no Campo. Estas escolas constroem os seus princípios a partir da Cooperação Sul-Sul, com países americanos, e ensinam a consociação de culturas, a agricultura de conservação, a gestão integrada de pragas e o uso de compostos orgânicos. Segundo o guia da FAO sobre a lagarta do funil de milho, as sementes melhoradas e os fertilizantes inorgânicos, ainda que ocasionalmente possam ter benefícios, são comprovadamente problemáticos a longo prazo: esgotam o solo em cerca de dois anos, o que propicia ainda mais o surgimento desta praga. Além disso, os organismos geneticamente modificados são pouco acessíveis à esmagadora maioria dos agricultores africanos: 98% dos produtores de milho africano são pequenos agricultores. Paulino é um deles. Seguindo as recomendações da FAO, poderia usar a mandioca ou feijão, intercalar talhões com diferentes árvores e arbustos para confundir a lagarta, num método conhecido como push-pull, que tem outros benefícios, como a produção de biomassa. Estes métodos reduzem a dependência de pesticidas, sobretudo sintéticos, muitas vezes usados pelos pequenos agricultores sem equipamento de proteção ou sem serem vistas as indicações de perigo nos rótulos. Resta saber se o programa das Escolas das Machambas vai chegar a Muheia e beneficiar famílias como a de Paulino Paissone, que precisam deste acompanhamento. Para isto, será essencial que o governo e a administração local facilitem o alargamento deste apoio.

Paulino conta-nos que noutras províncias tem havido campanhas contra os gafanhotos do deserto, uma das piores pragas que têm alastrado na África Oriental e com tendência a aumentar. Mas para a sua terra não há planos e com a lagarta do funil de milho, “a fome cada vez mais vai aumentar, se nada for feito.” Terá de vender toda a sua produção para comprar outros bens básicos, esvaziando, assim, o celeiro: é preciso custear a moagem dos cereais, mas também o óleo e o sabão, por exemplo. Por enquanto, faz o que lhe compete e toma os seus cuidados: ao contrário de muitos agricultores na região, não faz queimadas para limpar a terra. Limpa-a sempre à mão e com a enxada. As queimadas, sobretudo as descontroladas, não são só inseguras: “gastam rapidamente a terra. A nossa terra, o nosso solo, dessa forma, vai-se tornar num deserto. Nessa terra, ao terceiro ano de reutilização, já nada germina.”

Não é fácil perceber como é que Paulino Paissone ainda tem energia para coordenar as nove escolinhas comunitárias no distrito. Isto implica visitas semanais, reuniões com os supervisores e com as instituições que apoiam e apresentação de relatórios, que prepara na máquina de escrever que lhe foi oferecida por um padre italiano, uma Olivetti 500. Quando lhe perguntamos qual o seu grande sonho, não hesita: que haja paz e que as escolinhas continuem a funcionar bem. “Nenhum camponês quer ficar reduzido à geração de pobreza.” Quer infraestruturas e, sobretudo, educação e boas políticas públicas. São palavras de João Mosca, Diretor do Observatório do Meio Rural em Moçambique, na reportagem “Terra de Alguns”. Fica o apelo desta família e de tantas outras que dependem da terra, que é de todos.

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em destaque:

1.4 Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, particularmente os mais pobres e vulneráveis, tenham direitos iguais no acesso aos recursos económicos, bem como no acesso aos serviços básicos, à propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos naturais, novas tecnologias e serviços financeiros, incluindo microfinanciamento.

1.5 Até 2030, aumentar a resiliência dos mais pobres e em situação de maior vulnerabilidade, e reduzir a exposição e a vulnerabilidade destes aos fenómenos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres económicos, sociais e ambientais.

1.b Criar enquadramentos políticos sólidos ao nível nacional, regional e internacional, com base em estratégias de desenvolvimento a favor dos mais pobres e que sejam sensíveis às questões da igualdade do género, para apoiar investimentos acelerados nas ações de erradicação da pobreza.

2.3 Até 2030, duplicar a produtividade agrícola e o rendimento dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores de subsistência, pastores e pescadores, inclusive através de garantia de acesso igualitário à terra e a outros recursos produtivos tais como conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não agrícola.

2.4 Até 2030, garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às alterações climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo.

2.a Aumentar o investimento, inclusive através do reforço da cooperação internacional, nas infraestruturas rurais, investigação e extensão de serviços agrícolas, desenvolvimento de tecnologia, e os bancos de genes de plantas e animais, para aumentar a capacidade de produção agrícola nos países em desenvolvimento, em particular nos países menos desenvolvidos.

2.c Adotar medidas para garantir o funcionamento adequado dos mercados de matérias-primas agrícolas e seus derivados, e facilitar o acesso oportuno à informação sobre o mercado, inclusive sobre as reservas de alimentos, a fim de ajudar a limitar a volatilidade extrema dos preços dos alimentos.

12.2 Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais.

12.4 Até 2020, alcançar a gestão ambientalmente saudável dos produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida destes, de acordo com os marcos internacionais acordados, e reduzir significativamente a libertação destes para o ar, água e solo, para minimizar seus impactos negativos sobre a saúde humana e o meio ambiente.

15.2 Até 2020, promover a implementação da gestão sustentável de todos os tipos de florestas, travar a deflorestação, restaurar florestas degradadas e aumentar substancialmente os esforços de florestação e reflorestação, a nível global.

Esta publicação é produzida no âmbito do projeto Juntos pela Mudança II – Ação conjunta pela sustentabilidade e resiliência nos estilos de vida e políticas nacionais e globais – implementado em Portugal pela Fundação Fé e Cooperação, a Associação Casa Velha e a CIDSE.

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