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Njinguiritane - Colectânea de Contos (Volume I)
Título: Njinguiritane – Colectânea de Contos (Volume I)
Coordenação: FEC | Fundação Fé e Cooperação
Redacção: João Júnior, Laybe Judite, Nabylah Sulemane, Quércia Tembe, Shuaib Algema
Colaboração: António Cabrita e Alexandre Dunduro
Revisão: António Cabrita e Alexandre Dunduro
Ilustração: Elísio Ngoenha, Ernesto Guambe, Ernesto Polá, Gerson Silva, Ventura Zucula
Design gráfico e paginação: Diogo Lencastre
Editor: FEC | Fundação Fé e Cooperação
Local de Edição: Lisboa
Data de Edição: Março de 2022
A MENINA QUE CORREU O MUNDO
TEXTO: ERCINIO TEMBE
ILUSTRAÇÕES: LUÍS MÁRIO
Era uma vez um menino esperto, o Nando, que tinha sete anos e não gostava de estudar. Gazetava às aulas, não se esforçava nas matérias e não fazia os T.P.C’ s. O rapaz só gostava de brincar e de jogar futebol com seus amiguinhos.
Certo dia, o menino voltou da escola todo sujo, igualzinho a um porco acabado de sair da pocilga. A mãe, primeiro de susto e depois incrédula, ficou sem palavras. A camisa e as calças de uniforme pareciam dois esfregões, de tão imundas que estavam.
– Nando! – Exclamou ela, ao vê-lo entrar em casa.
– Olá, mãe. – Respondeu o Nando sem dar importância ao estado calamitoso em que se encontrava.
– Vai já tomar um banho menino! – Ralhou a mãe.
– Ya, mãe. – Retorquiu o Nando.
– E não te esqueças de colocar esses farrapos no no cesto de roupa suja para eu poder lavar! Ouviste nem?
– Sim mãe. – Respondeu o Nando antes de se precipitar para a casa de banho.
O vovô Langa, sentado no sofá da sala de estar, assistia à conversa de mãe e filho com um ar cómico. O vovô interrompeu a leitura do seu livro e olhou o rapaz com muita ternura, vendo no menino uma luz muito especial, típica da infância. A luz da infância é cheia de sonhos, de fantasias, de mundos coloridos onde não existe o medo, onde ninguém se machuca e tudo é possível.
O Nando era um menino muito alegre, traquina, bastante curioso, tinha uma coleção de carrinhos na sua mini garagem imaginário, muitas bandas desenhadas de super-heróis. Do que aquele rapaz mais gostava era de jogar futebol, amava mais o futebol do que os próprios estudos.
– Como foram as aulas? – Questionou o vovô Langa ao ver o neto sair do banho.
– Foram boas. – Respondeu o neto.
– O que você aprendeu? – Insistiu o avô.
– Muitas coisas. – Respondeu o Nando todo distraído.
– Muitas coisas como o quê? Por exemplo!
– Oooh… Esqueci!
O velhote riu-se do petiz e inquiriu:
– Gostarias que eu te contasse uma história de uma menina que era assim como tu quando criança?
– Sim vovô eu quero, vai conta, eu quero ouvir…
O Nando gostava de ouvir as histórias que o vovô Langa contava para ele, eram histórias fascinantes e cheias de muitos ensinamentos; muitos desses ensinamentos eram tão bons que quem os ouvia atentamente os guardava para toda a vida.
– Calma rapaz, vai vestir-se primeiro antes que tua mãe comece a ralhar contigo novamente. – Riu-se o vovô Langa.
– Está bem. Respondeu o menino todo empolgado.
O Nando saiu pulando, da sala de estar até ao seu quarto. Voltou minutos depois já recomposto, já vestido e com o cabelo penteado, e implorou para que o avô lhe contasse uma história.
– Vovô conta-me uma história. O vovô sorriu para o neto e disse: -Esta bem, mas tens de prometer-me que vais ficar atento.
– Sim, eu prometo. Eu juro, eu juro, eu juro… – Prometeu o Nando todo ansioso em escutar atentamente a história do avô.
O vovô Langa pegou no livro que lia antes da chegada do neto à casa, abriu o livro e leu para o neto:
“Passavam-se vinte e sete dias do mês de Outubro, de mil novecentos e setenta e dois, quando Moçambique e o mundo viram nascer a Lurdinha, a menina que correu o mundo, foi numa sexta-feira quente de verão, no bairro do Chamanculo, um bairro pacato da então cidade de Lourenço Marques (actual Maputo).
Quis o destino que a nossa menina de ouro viesse nascer numa família humilde e num dos bairros mais pobres da capital do país. Nessa altura, nos anos setenta o bairro do Chamanculo não tinha água potável, as casas eram todas precárias, feitas de madeira e zinco, não havia condições mínimas de saneamento.”
– Avô! – Interrompeu o Nando.
– Sim, meu neto. Podes falar!
– O que é um água potável?
– Água potável é a água que dá para beber, no bairro que nasceu a nossa menina de ouro não havia água boa para se beber.
– E saneamento, o que é?
– Saneamento tem a ver com a limpeza dos lugares onde as pessoas vivem e de todos os espaços à sua volta.
– Eles não tinham água para beber e nem lugares limpos para viver?
– Sim… é isso.
– E então vovô, como é que eles viviam?
– Bem eles viviam à rasca, com as poucas condições que dispunham. Balbuciou o Vovô Langa.
Continuando: “Lurdinha era filha do tio João e da tia Catarina, a Lurdinha era uma menina muito inteligente, tirava sempre boas notas na escola, mesmo sem ser uma menina muito estudiosa e assídua às aulas. A sua maior paixão eram os
desportos, a Lurdinha tinha um grande amor pelo futebol de forma particular, ela já havia nascido com esse amor.
Por várias vezes a menina de ouro faltou à escola por conta dessa paixão que tinha pelo futebol, por várias vezes os pais da Lurdinha aborrecerem-se com ela, por entenderem, e com toda razão, que os estudos deviam estar em primeiro lugar nas opções de qualquer criança naquela idade.”
– Percebeu Nando?
– Sim!
– Percebeu o quê?
– Percebi que a escola deve estar em primeiro lugar.
– Exacto, estudar é a coisa mais importante, todas crianças têm o direito de ir a escola porque têm o dever se serem bons alunos, nunca te esqueças disso, rapaz.
Satisfeito com o seu nível de atenção, o vovô Langa sorriu para o neto, ajustou os óculos, voltou ao livro e continuou a ler:
“Numa dessas vezes os pais da Lurdinha mandaram-na para a Maxixe, lá em Inhambane, para ver se ela tirava da cabeça esse vício pelo futebol e se dedicava mais aos estudos.
E lá em Inhambane a nossa menina de ouro foi morar na casa da sua irmã, a Gina. Durante três anos a Lurdinha viveu longe dos pais e dos amigos, previa-se que com esse distanciamento ela dedicasse as suas energias una e exclusivamente à escola que como todos bem sabemos é importantíssimo para o desenvolvimento humano. Porém a nossa menina de ouro era teimosa, agora distante dos pais, e tendo adoptado uma maior disciplina, tinha conseguido conciliar as duas actividades, de manhã ela ia à escola e à tarde jogava futebol com os novos amigos – o que fez com que ela progredisse nos estudos e na sua preparação física.
A Lurdes Mutola, como agora lhe chamavam, era aplaudida e acarinhada pelo grande talento que tinha nos pés; a nossa menina de ouro jogava futebol melhor que muitos rapazes.”
– Avô porque a Lurdinha jogava futebol, se ela era uma menina?
– Nando, a Lurdinha era uma menina especial e de gostos peculiares, ela adorava o futebol. O futebol é para todos meninos e meninas, todos podem jogar futebol.
Continuando: “Após os três anos, a Gina mudou-se para o Norte de Moçambique e Lurdes regressou a Maputo, ao Chamanculo.
Os três anos em Inhambane fizeram com que Lurdinha aprendesse a conviver com as diferenças, em Inhambane havia poucas meninas a praticar desportos o que a fez aprender a conviver naturalmente com os rapazes, e assim, por muito tempo, a nossa menina de ouro fez parte da equipa de futebol masculino visto que naquela altura não havia no nosso país uma equipa de futebol feminino.
Isso indignava bastantes os seus pais, que apesar de tudo que era dito sobre o talento da filha, não viam com bom grado ter uma filha a praticar um desporto tradicionalmente praticado pelos homens.”
– Por que os pais da Lurdinha eram contra ela jogar futebol?
– Os pais eram contra a Lurdinha jogar futebol porque eles queriam que ela se focasse mais nos estudos e também porque naquela altura só os homens podiam jogar futebol, as meninas daquele tempo dedicavam-se mais a outras actividades que não estavam ligadas aos desportos. Presta bem atenção à minha leitura, mais adiante o livro vai explicar os porquês dos pais da nossa Lurdinha serem contra ela praticar desportos.
“Num belo dia, João Mutola, que era operário dos CFM (Caminhos de Ferro de Moçambique), abstraía-se no trabalho, aliviado por estar convencido de que sua filha Lurdinha havia finalmente decidido concentrar-se unicamente nos estudos.
O pobre homem estava certo que naquele exacto momento a sua filha estava na escola a estudar, conforme prometera na véspera. Durante o seu regresso para casa, o seu colega de serviço falou-lhe da multidão frenética que acompanhava um grande torneio de futebol da cidade que decorria no bairro do Chamanculo.
Entusiasmado, o colega vira-se para o João e diz:
– O bairro não fala de outra coisa, esse campeonato de futebol está a arrastar multidões.
– É mesmo!?
– Sim é, e só se fala de uma rapariga que joga melhor que muitos homens…- Retorquiu o colega do João.
– Agora fiquei bastante curioso, essa eu quero ver, como pode uma mulher jogar futebol melhor que muitos homens? Não pode ser, deve ser um exagero. – Riu-se o João Mutola.
– Não é exagero isso eu posso garantir, a miúda é rápida, inteligente, faz fintas inacreditáveis, dribla como um jogador profissional e marca belos golos. – Enfatizou o operário.
– Então vamos acelerar o passo não posso perder esse jogo.
Chegados ao campo, o João ficou estupefacto com a moldura humana que se deliciava com a partida de futebol, aproximou-se da linha do jogo para ver melhor a rapariga que fazia maravilhas inimagináveis com a bola e sua surpresa não foi pequena quando viu a rapariga. Ou melhor, o João quase desmaiava. A jogadora de cujo talento todos falavam sem se cansar, era mais ninguém do mais
que sua filha, Maria de Lurdes. O pai não foi capaz, no momento, de apreciar as qualidades atléticas da sua filha. Sentiu-se enganado e, mais do que castigá-la, culpou-se da sua ingenuidade ao acreditar que a filha se havia rendido à primazia dos estudos.
Nesse mesmo dia, em casa, houve conversa e foi dura. Lurdes entendeu que daquele dia em diante não mais lhe valeriam usar as “fintas” na sua relação com os pais e com suas preferências. A menina de poucas palavras, mas com muito amor àquilo que fazia, convenceu os pais que a obediência seria o seu caminho, mas que para isso também deveria haver alguma cedência por parte deles. Daí
em diante a Lurdinda passou a jogar com o consentimento dos pais. Ingressou no futebol masculino, inscrevendo-se na Águia d’Ouro. Durante esse período como jogadora de futebol masculino, a fama da menina com fortes dotes futebolísticos foi crescendo o que fez com que se somassem as contestações populares.
Para muitos era ilegal Lurdes jogar com os homens.
Foi então que surgiu na vida da nossa menina de ouro, um senhor chamado José Craveirinha, um conceituado poeta moçambicano, impressionado com o que ouvia falar da atleta que desafiava a todos, rompia barreiras, e ultrapassava todos preconceitos para correr atrás dos seus sonhos e fez todos os esforços para conhecer a Maria de Lurdes Mutola. Foi num jogo no campo pelado da Mafalala,
que à semelhança de Chamanculo é um bairro suburbano da cidade de Maputo.
Depois de um jogo o escritor aproximou-se de Lurdes Mutola e sensibilizou-a a mudar de modalidade.
– Boa tarde! Você é a Lurdinha? Indagou o José Craveirinha,
– Sim, sou eu mesma. Respondeu a Lurdes Mutola. Sem dar muita importância do escritor.
– Há um bom tempo que tenho ouvido falar de ti e dos teus dotes atléticos. Tenho de confessar, tudo o que tenho ouvido não é um exagero, és realmente muito talentosa.
– Obrigada. Agradeceu a Lurdes Mutola.
– Por nada, reparei também o quanto és inteligente na leitura que fazes dos lances do jogo, és um prodígio da bola, és resistente, tu corres por todo o campo sem te cansares e essa é uma super qualidade que se tem de notar.
– Obrigada. Agradeceu novamente a Lurdes Mutola.
– Corres livre como uma gazela. A Lurdes já pensou em trocar o futebol pelo atletismo?
A Lurdinha nada disse, olhou para o Craveirinha, virou os olhos para o alto como quem procura uma resposta nas nuvens, abanou a cabeça como quem indaga “quem sabe?”
A Maria de Lurdes a tentar desenvencilhar-se dos atacadores das suas chuteiras.
Várias pessoas a circundavam, ela tinha muitos admiradores pelo bairro, mas também havia na multidão pessoas que repudiavam a nossa menina de ouro.
Enquanto conversava com o nosso renomado escritor, o José Craveirinha, era possível ouvir os gritos dos apoiantes da equipa adversária e de outros espectadores machistas, que movidos pela dor da derrota que a equipa da nossa menina de ouro impôs sobre a equipa deles proferiam injúrias: “menina, futebol é desporto para homens!” “lugar de mulher é na cozinha!” “sai já daí!”. Gritavam esses e outros tantos impropérios.”
– Vovô, o que é uma injúria? – Interrompeu novamente o Nando.
– Meu netinho querido, injúria é uma ofensa, um insulto, uma palavra feia que não se deve dizer.
– Essas pessoas eram muito maldosas.
– Sim! Mas não ligues para eles, a nossa heroína venceu-os a todos sem precisar usar a violência ou precisar pagar com a mesma moeda. Escuta só a parte do texto que vou ler a seguir.
“A nossa menina de ouro não ligava a mínima para o falatório do povo, quando mais era injuriada mais ela jogava, mais golos de belo efeito marcava, mais vitórias ela oferecia à sua equipa.
– A avaliar pelo que vejo não deve ser fácil para uma mulher, por mais talentosa que seja, jogar futebol numa equipa masculina…- Continuou o José Craveirinha.
– Realmente, não é nada fácil. As meninas do meu bairro me veem com maus olhos, chamam-me vários nomes feios, como “Maria Rapaz”, entre outras alcunhas que me custam mencionar; enfim, eu sou forte e encaro isso como mais um desafio a superar
– És uma mulher forte, destemida na tua persistência, e isso vai-te fazer abrir muitas portas e correr o mundo. Infelizmente no nosso país não temos “ainda” equipas de futebol e essa é mais um grande razão para você tentar mudar de modalidade. Eu posso te garantir que aí você sofreria menos esse tipo de preconceito, o futebol ainda é visto por muitos como uma modalidade exclusiva aos
homens, vai por mim, eu tenho a máxima certeza que você Lurdinha teria uma prestação igual ou até superior a esta que tens agora no futebol.
– Até pode, nunca tinha parado para pensar nisso, já participei de algumas provas de atletismo na escola, mas o meu maior sonho mesmo é o de romper essa crença que defende que só os homens podem jogar futebol e me tornar numa jogadora de futebol profissional.
– Está bem, vamos tentar fazer o seguinte. Eu vou apresentar-te ao meu filho Stélio. Ele é treinador de atletismo, ele vai te dar todo preparo, todas as bases para seres uma atleta de alta competição. É possível conciliar as duas modalidades.
Vou dar-te o tempo que for necessário para você pensar. Pode ser?
– Sim, pode. Respondeu a Lurdes Mutola.
José Craveirinha despediu-se da Maria de Lurdes Mutola com tenção de voltar a vê-la jogar no torneio do bairro, mas acima de tudo com esperança de obter da nossa menina de ouro uma resposta positiva.”
– Tomara que a Lurdes Mutola não aceite! Interrompeu Nando.
– Porquê!? Perguntou o Vovô Langa mergulhado em mares de espanto.
– Porque o futebol anima mais que o atletismo.
– Você acha o futebol melhor que o atletismo?
– Sim…
O velho Langa riu-se do neto e continuou a leitura:
“A resposta da Lurdinha não tardou, após reflectir bastante, a Lurdes Mutola decidiu tentar carreira no atletismo. O José Craveirinha a levou até ao Clube Desportivo de Maputo e apresentou-a ao seu filho, Stélio Craveirinha, na altura treinador de atletismo pelo Desportivo, um grande clube histórico de Moçambique.
Começou de imediato a treinar e a praticar o atletismo.
Ao mesmo tempo, passou a frequentar assiduamente as aulas e a dedicar-se mais aos estudos por recomendação dos pais, do seu treinador de atletismo e por exigência do clube.
Lurdes Mutola ganhou gosto pelo atletismo e treinava a sério aquela modalidade mas sem nunca renegar o futebol, que sempre foi a sua maior paixão.
Durante muito tempo ela dividia-se entre as duas modalidades. Até que em 1988, Lurdes Mutola participou dos jogos olímpicos de Seul. A sua primeira reação foi a de quase sucumbir à grandiosidade do evento – nunca tinha visto nada assim. Mas depois reagiu positivamente e ganhou coragem para passear a sua classe naquele evento de grande envergadura.”
– Seul!? Onde isso fica?
– Seul fica na Ásia um continente muito distante daqui, Seul é capital de um país chamado Coreia do Sul, já ouviste falar?
– Não!
– Você é muito novo ainda, com certeza ouvirás falar muito deste país à medida que vieres a crescer.
Continuando: “Seul foi o pontapé de saída que lapidou a nossa menina de ouro para as provas internacionais. Respondendo às condições impostas pelos pais de Lurdes Mutola, que estavam sem recursos para dar seguimento à carreira da Lurdes Mutola, as autoridades moçambicanas e instituições desportivas lançaram uma campanha para a busca de apoio para a atribuição de uma bolsa de
estudos para a atleta. As opções dividiam-se entre Portugal e Estados Unidos da América, com algumas tentativas para a Rússia e outros países do Leste.
A escolha recaiu sobre os Estados Unidos da América, para onde a Maria de Lurdes Mutola seguiu com uma Bolsa de Solidariedade Olímpica.
Já longe da família e a viver nos Estados Unidos da América, a ligação que ela tinha com a família tornou-se maior, pois ela sentia muitas saudades dos pais, dos amigos, do bairro onde ela nasceu. Por isso, assim que entrava em férias regressava a casa para matar as saudades.
O talento da nossa menina de ouro era de uma dimensão extraplanetária, rapidamente surgiram de vários cantos do mundo propostas para ela trocar de nacionalidade, mas a Lurdinha recusou todas propostas para representar una e exclusivamente Moçambique, a sua pátria amada e o país que a viu nascer.
Rapidamente, Mutola se tornou uma das mulheres mais realizadas do mundo. Como atleta ela conseguiu ombrear com as melhores atletas do mundo, venceu muitas corridas, esse era um feito que ninguém mais tinha conseguido em Moçambique, e mesmo sendo de um dos países mais pobres do mundo, Lurdes Mutola conseguiu escrever seu nome e o de Moçambique com tinta indelével.
– Ela foi campeã olímpica de Sydney, uma linda cidade lá na Austrália, isso nas Olimpíadas do ano 2000 e campeã mundial dos 800 metros de Edmonton, no Canadá, nas provas mundiais do ano 2001. A nossa menina de ouro detém o recorde mundial de 1000 metros, em pista aberta e coberta, ela também é recordista Africana dos 800 metros em pista aberta. A nossa heroína do desporto consagrou-
se no ano de 1995 vencedora do prémio da IAAF-Federação Internacional de Atletismo Amador. Foi três vezes campeã Africana (uma das quais em 1500 metros). Em 2000, foi eleita para fazer parte da comissão de Atletas do Comité Olímpico Internacional, posição importantíssima que ela ocupa até hoje. Fim.”
– Já acabou? Questionou o Nando todo incrédulo.
– Sim já acabou meu neto, gostou da história? Sorriu o vovô Langa.
– Sim… Volta a contar avô.
– Claro. Voltarei a ler-te esta história quantas vezes você quiser, mas com uma
condição.
– Qual condição?
– Que você se dedique muito aos estudos, a tua mãe vive reclamando das tuas notas e da mania que tens pelo futebol. Em primeiro lugar a escola, em segundo lugar escola, terceiro lugar escola, só no quarto e no quinto deverão vir as outras coisas, pode ser?
– Sim. Respondeu o Nando.
– Então trato feito, melhore as tuas notas que eu voltarei a ler-te, estas e outras histórias.
– Está bem, avô eu prometo ser um aluno exemplar.
– Boa Nando, é assim que deve ser.
– Avô! Quando eu crescer quero ser como a Lurdes Mutola. Quero ganhar muitas medalhas de ouro e levantar o nome de Moçambique.
– Vais largar o futebol?
– Humm… Mais ou menos…
O velho Langa riu-se do neto e disse:
– Nando, antes de largares o futebol eu quero que saibas que a Lurdes Mutola é dona de todos recordes de atletismo em Moçambique. Ela é de todos atletas moçambicanos a que melhor honrou o bom nome de Moçambique além-fronteira, ganhou muitos títulos, muitas medalhas em olimpíadas e campeonatos mundiais de atletismo. Em Agosto de 2015, a maior Universidade do país, falo-te da Universidade Eduardo Mondlane atribuíu-lhe o título de Doutora Honoris Causa, na especialidade de Ciências do Desporto. A homenagem aconteceu em reconhecimento aos feitos nobres e únicos da atleta que correu o mundo ostentando a nossa bandeira ao mais alto nível.
– Uau! Então tenho que me esforçar muito para ser como a Lurdes Mutola, fazer tudo o que ela vez por Moçambique.
– Realmente, mas que tal rever a matéria da escola enquanto esse dia não chega?
O Nando acenou a cabeça afirmativamente, deu um abraço no seu avô, pegou nos seus livros e começou a rever a matéria conforme o seu vovô Langa lhe havia sugerido.
Daquele dia em diante, o Nando se transformou num novo menino, bem diferente daquele traquina que era antes, e passou a ser um aluno estudioso, asseado, sempre assíduo e muito participativo as aulas.
FAREI ISSO MAIS TARDE
TEXTO: TARCÍSIO JOÃO MAPOSSE
ILUSTRAÇÕES: HELENA ANTÓNIO
O Jorginho levantou-se da cama, lavou os dentes, e rumou à cozinha a fim de tomar o mata-bicho.
– Bom dia, Jorginho! Como estás? Preparado para mais um dia de aulas?
– Não sei, mãe! Porquê ir à escola e sofrer, se podemos fazer as coisas a partir da experiência dos outros?
– Filho, nem sempre a experiência traz resultados a curto prazo… ou até é credível. A escola, pelo contrário, ensina-nos o que se passou no passado e assim podemos fazer previsões e evitamos cometer os mesmos erros. Por exemplo, se conhecermos o volume do tanque daqui de casa isso evita-nos que encomendemos camiões de água em número insuficiente ou a mais e assim poupamos tempo e todos os recursos que são envolvidos neste processo.
Depois desta expedita resposta, o pequeno-almoço foi mais rápido que de outras vezes pois o relógio nunca reduz a marcha e nunca se importa com os motivos que estão por detrás de um levantamento tardio da cama. O Jorge todos os dias dava de dar de comer ao cão antes de sair para a escola mas, nesse dia, isso não foi possível pois já estava atrasado demais. O cão assistia a tudo aquilo enquanto o seu estômago cantava, ou melhor, roncava, num ritmo esfíngico. Mas não era só o Rex e a dona Cremilda que viviam com o Jorge. Havia também um senhor chamado Augusto, pai do Jorge, que por sinal estava mergulhado numa poça de soneca, pois trabalhava como condutor de camiões pesados durante à noite e de dia estatelava-se na sua cama, a dormir.
Foi num gesto mal ensaiado com o pé direito que o Jorge pisou a pata do Rex.
Pobre cão, não tinha sequer forças para reagir pois estava consumido pela forme e, só lhe restou um soslaio sombrio, que nem sequer foi notado pelo Jorge, que estava com pressa de pegar o autocarro que já buzinava defronte à casa.
– Jorge, já vais?! E o cão?! Ele deve comer…
– Oh mãe, não te preocupes. Farei isso mais tarde…
Dado o pulo para o autocarro, este pôs-se a caminho, nas habituais curvas irregulares que aqueciam o alcatrão, tentando desta forma fintar o tempo, que não dava tréguas aos preguiçosos que se levantam tarde da cama. Embora o velocímetro não marcasse mais do que quarenta quilómetros por hora pois, mais que isso, os pneus tomavam uma direcção arbitrária à medida que a água da chuva banhava o alcatrão.
Do lado da janela, o Jorge observava tudo. Observava um vizinho ralhando com o outro por causa das direções equívocas das águas que enchiam os seus quintais, fazendo pensar que um deixava água na casa do outro propositadamente.
Observava o menino que tinha a rua como a sua casa, correndo para debaixo de uma ponte. Enfim, parece que nas poças de chuva se espelhava a realidade! Afinal a falta da paz não se traduz só no grito das armas.
Exatamente quarenta minutos mais tarde o Jorge viu-se em frente à porta da sala de aulas e coincidentemente lá estava o seu amigo Felisberto, também atrasado.
– Hey Jorge, estamos ferrados pá! A professora de matemática é fera e não gosta de atrasos.
– Relaxe, Felisberto. Vamos dar a desculpa de que está a chover e que isso atrasou os nossos programas…
– Bom dia! – Vociferaram os dois atrasados.
– Quem é? Não têm relógio? Por que motivo atrasaram? … – E assim a professora descarregava uma série de questões que refletiam o seu desagrado máximo.
– É bom que tenha uma boa justificação para poderem entrar! – Completou a professora.
Enquanto o Jorge tentava ensaiar uma desculpa, o Felisberto adiantou-se-lhe e disse: – Sim professora… atrasámos porque o Jorge estava a procurar a cor preta no arco-íris!
Uma cortina pesada de silêncio abafava os olhares entre-trocados, até que uma explosão de risos apoderou-se de todos, inclusive da própria professora que acabou por deixar entrar os dois atrasados. Afinal a mudança de humor influencia nas decisões!
O que aqueles dois atrasados poderiam aprender? A aula tinha a duração de uma hora e eles havam-se atrasado quarenta minutos. Isso valeu-lhes a visão que os bois teriam de um palácio, de cada vez que eles fixavam o quadro na tentativa de descodificar ou de decifrar como aqueles números se transformavam noutros.
Bom, pelo menos chegaram a tempo de receber os TPC`s, que eram individuais e elaborados instantaneamente pela professora para cada estudante que se fazia presente na sala de aulas.
– Hey Jorge?!
– Fala aí Felisberto!
– Vi um bosque bem pertinho da tua zona. Podemos ir lá ao meio da tarde?
– Sem problemas, Felisberto. Olha, o matulão do Zacarias olha-nos de lado, como que diz “ A professora não deveria ter deixado estes dois entrarem na aula”, mas eu não tenho medo dele, nem da careta feia que ele está fazendo.
Naquela situação o Felisberto sentiu a necessidade de fazer chegar a mensagem até ao matulão do Zacarias mas, a professora estava na sala. Então ele teve a ideia de fazer passar a mensagem por uns cinco colegas, trajecto suficiente para que a informação chegasse ao Matulão sem que a professora, a autoridade na sala, desse conta. Tomando a palavra, Felisberto disse:
– Hey António, diga ao José que o Jorge diz não ter medo do grande matulão Zacarias! – o António encaminhou o olhar até ao José e disse:
– Hey José, o Jorge disse que o Zacarias está a irritá-lo e que não tem medo dele! – O José virou-se para o Fernando e disse:
– Hey Fernando, o Jorge disse que quer bater, aliás, que quer dar uma boa sova no Zacarias! – Fernando escutou e, na onda da tensão, naquele mesmo instante piscou o olho à Cláudia e falou-lhe:
– Hey Cláudia, o Jorge disse que vai espancar o Zacarias, hoje, na saída das aulas!
Finalmente, a Cláudia deu um suspiro de coragem e interceptou o destinatário, o matulão do Zacarias, dizendo-lhe:
– Zacarias, o Jorge quer um duelo contigo após as aulas e está convencido de que vai te dar uma lição à altura!
Tendo o Zacarias recebido esta informação, prontificou-se em contar os segundos até à hora da saída. Horas depois, o Jorge e o Felisberto estavam na paragem e foram surpreendidos por uma voz bruta que dizia:
– Cá estou Jorge! Disseram-me que queres me bater. Vamos resolver isto como homens e punho por punho!
No meio daquela faísca de nervos, os dois amigos entreolharam-se com espanto, surpreendidos com a aparição do grande e temível Zacarias. Os seus ombros encolhera-se e tudo o que desejavam naquele momento era encontrar uma porta mágica que os fizesse desaparecer para bem longe dali.
O Jorge muniu-se da pequena coragem que lhe sobrava e de forma cabisbaixa, com muito esforço levantou a voz dizendo:
– Não é verdade. Eu só havia dito que estava um pouco desconfortável com o facto de estares a olhar para mim. Nunca revelei interesse de lutar contigo, até porque todo o mundo está ciente que és o rei da porrada.
Esta justificação não pareceu ter convencido o matulão do Zacarias que ficou mais nervoso e avermelhado. O Felisberto não podia ficar indiferente no meio daquela tensão, então encheu-se de e disse:
– Sim, o Jorge nunca quis te bater, ó Zacarias. O Jorge apenas estava um pouco incomodado com o olhar sufocante que caía sobre ele vindo de ti, durante a aula de matemática. Houve uma distorção gradual da informação original, até chegar aos teus ouvidos na pior versão.
Nada se conseguiu com estas tentativas de amansar a fera, pois o Zacarias já tentava ensaiar um soco. Enquanto isso acontecia, o Zacarias percebia que os dois amigos pareciam estranhamente calmos. Isto assustou-o e perguntou:
– Porque estão tão calmos? Não têm medo de serem batidos?
– A violência gera mais violência! – disse o Felisberto
Uma resposta que deixou o Zacarias envergonhado, o que deu tempo a que os dois amigos subissem para o autocarro que por ali passava e ia na direcção de suas casas.
O Jorge chegou a casa mais embrulhado pelo sono do que pela fome. Isto fez-lhe ir direto à cama sem dar comida ao cão Rex que, desde manhã, engolia umas gotas de saliva para enganar o estômago, e nem teve o cuidado de fazer o trabalho de matemática, que acabou por fixar para “ mais tarde”.
O sono foi tão profundo e bom que ele sonhou que fazia o trabalho de matemática e, ao acordar, ficou convencido de que já tinha feito o dever escolar. Tão real o sono nem? Pois é! Faltavam alguns minutos para o seu amigo Felisberto passar da sua casa para juntos irem ao bosque. Mas naqueles poucos minutos era imperioso comer algo. Foi neste fôlego que o Jorge se dirigiu até à cozinha.
Mas porquê a cozinha? Certamente, esperançoso em encontrar o almoço que deixara escapar por conta do sono. Já que a sua mãe já tinha ido trabalhar, a missão do Jorge era vasculhar nas marmitas para ver o que a mãe tinha deixado para ele comer.
Chegado à cozinha, viu o seu prato com migalhas de batatas, arroz e frango.
Quem teria tido a coragem de fazer toda aquela maldade? Certamente um ser que não se conseguiu saciar com o “farei mais tarde” do Jorge!
– Oh não Rex! E agora?! O que será de mim?! Estou com uma fome danada e tudo o que sobrou é um punhado de pão banhado de formigas! A fome com que estou! – Lastimava o Jorge numa tristeza incomparável. O cão nas tintas, aliás, tinha-se servido da situação para fazer uns ajustes de contas.
Num tombar de desespero, o estômago do Jorge soltou um queixume. Afinal era como se a barriga o fosse o oceano e o pão apenas um peixe, quase nenhuma diferença se fazia sentir.
Os poucos minutos esgotaram-se e já se ouvia o Felisberto gritando:
– Vamos lá Jorge, não temos o dia todo!
Os dois puseram-se ao caminho e chegado ao bosque introduziram-se imediatamente no seu interior. Viam tudo com as suas cores naturais, viam a beleza da natureza, viam o azul puro e uma paz refletida num silêncio resultante da inexistência de algazarra humana, ou das suas máquinas desequilibradas com que infernizam os tímpanos. Enfim, da falta de tudo pois só o nada traz um silêncio daquela dimensão.
– Vocês não têm medo de nada?! – Questionava num tom de admiração uma mulher que segurava uma lança na sua mão esquerda, o rosto intercalado por três linhas verdes e dois furos de diâmetros iguais a berlindes médios nas duas orelhas. Wau! O que viria a ser isto? Seria uma emboscada de canibais?
– Porquê haveríamos de ter medo? – Perguntou o Felisberto.
– Isto não é o jardim do éden! Há criaturas perigosas e sem o mínimo de compaixão.
Vocês os dois precisam da minha proteção. Não me parece que vocês sejam os matadores das árvores pois não vejo convosco aqueles objetos metálicos com dentes mais pontiagudos que de um vampiro. Vou proteger-vos em troca de cinco moedas que devem ser entregues já…
O Jorge e o Felisberto não acreditavam na proteção daquela mulher pois, desde os tempos remotos, a mulher nunca se destacou em atividades de caça e manuseamento de armas.
O Jorge interrompeu o homem num tom irónico:
– Vamos fazer o pagamento. Eu mesmo fá-lo-ei… mais tarde.
A mulher, descontente com a resposta, deu as costas aos dois amigos e enfiou-se na sombra alta de um arbusto que a camuflou por completo.
Os dois amigos continuaram a vaguear pelo bosque até serem surpreendidos por um rinoceronte que, pelo semblante, pensaria, “ Oh pá, já tenho aqui um jantar ”.
Naquele instante de aflição apareceu a mulher da lança e os dois amigos pediram- lhe socorro. A mulher golpeou a ferra. De onde lhe vinha toda aquela força?! A mulher pediu as moedas mas os dois amigos não a deram propositadamente.
Mas pouco faltou para que o Felisberto e o Jorge se sentissem perdidos. Aí suplicaram à mulher que os tirasse eles dali. A mulher já farta, voltando-lhes as costas, respondeu:
– Farei isso mais tarde.
GRITOS DE UMA CRIANÇA
TEXTO: ABEL HENRIQUES MANHIQUE
ILUSTRAÇÕES: SÉRGIO CARLOS
É com profunda dor e mágoa que digo que os meus sonhos e direitos foram jogados na lama. Lá veio uma grande máquina que se movia com quatro rodas, e lá dentro estavam a minha tia com a senhora patroa (ladra dos meus sonhos), sem eu saber. Foi uma recepção bonita, parecia que o presidente estava vindo na minha casa. Sentados com os meus pais, eles negociavam a minha ida para Maputo.
O meu pai resistia pois já tinha negociado o meu casamento, mas a minha mãe era movida pela ambição, depois de ter visto a grande máquina de quatro rodas; ela já me imaginava voltando de Maputo naquela máquina de quatro rodas e a minha outra tia esperava a sua parte do dinheiro na negociação.
Incrível era a minha inocência, absorvida pelo desejo de subir naquela máquina e de conhecer a grande cidade. A negociação deu certo por causa dos pães e do açúcar que a senhora patroa (ladra dos meus sonhos) trouxe e também pela promessa de me darem uma educação na melhor escola privada do país, e de que seria tratada como filha de casa, para além de um salário de 2000mt mensal.
Os meus pais não resistiram e arrumaram rapidamente numa trouxa a minha pouca roupa. E lá vou eu naquela máquina de quatro rodas, bem feliz, até alheia à tristeza do casamento que o meu pai negociava com o senhor barrigudo-barbudo. Maputo era uma grande cidade, como nunca imaginei que existia no mundo, nela as estrelas e a lua haviam sido transformadas em grandes luzes, cada casa em cima das outras parecia um sonho de que só faltava ser acordada.
A chegada a casa da minha senhora patroa (ladra dos meus sonhos) não desmereceu, não imaginava que poderia viver numa casa tão luxuosa e recheada de tudo, pois a minha era de palhota. Na casa havia três crianças, uma mais velha que eu, outra da minha idade, e um bebé, e o senhor marido da senhora patroa (ladra dos meus sonhos); praticamente iria trabalhar para cinco pessoas.
Na primeira semana fui tratada como uma princesa e quando ligava para meus pais eu dizia que não queria voltar mais para lá. Felicidade da minha mãe, por saber que o melhor futuro me fora reservado. Passado o primeiro mês tudo ainda estava bem e foi enviado uma parte do meu salário para casa dos meus pais, o que deixou o meu pai radiante por ter conseguido um valor para beber tontonto com os amigos.
Eu sentia-me mais elegante, pois era tratada como filha de casa, uma das promessas da senhora (ladra dos meus sonhos). Os dias sucediam-se mas à escola não conseguia ir, dado que tinha que ficar com o bebé em casa e de fazer outros deveres; a casa era tão grande que eu sempre ficava cansada por tanto trabalho, e os dias da princesa desvaneciam-se.
Eu não aguentava mais porque todos os outros se havia acrescentado o dever de cozinhar, e adormecia bem estoirada enquanto a senhora ladra dos meus sonhos e o seu marido voltavam tarde e me acordavam para servi-lhes o jantar e eu não parava até eles terminarem, de modo a tirar os pratos da mesa.
Oh, aí começou a minha a tristeza, e pior era a situação no domingo quando todos estavam em casa, ao ver as crianças a brincar e eu trabalhando caíam-me as lágrimas, embora dissimulasse com um sorriso, fingindo que estava tudo bem; queria tanto brincar com elas, mas o trabalho me ocupava e já só pensava em descansar.
O que mais doía é que quando ligava para os meus pais eles me recriminavam, dizendo que eu era uma ingrata porque tinha tudo ao meu redor e vivia numa casa de luxo e nas melhores condições, com salário, e ainda reclamava.
Eles não sabiam que as minhas mordomias se tinham evaporado. A situação estava bem pior, mas a casa começou a ser um inferno quando o senhor Marido da senhora patroa (ladra dos meus sonhos) gozou férias no seu trabalho. Passou-se uma semana sem ele sair de casa e mais trabalhos me eram dados e já com muita vontade de voltar a casa.
Entretanto, a senhora patroa (ladra dos meus sonhos) deixara de enviar o dinheiro para casa dos meus pais, dizia que guardava para me dar todo no final do ano, essa era a minha esperança de ter um valor acumulado para comprar algo para a minha humilde família. Mas já começava a levar porrada em casa por não conseguir acabar todos os deveres; o bebé chorava e eu tinha que a ninar até dormir, o que me roubava tempo para os outros deveres. Já não aguentava mais aquela situação, até porque os outros filhos zombavam de mim, por não falar perfeitamente a língua portuguesa.
“Já estava no fundo do poço mas nesse dia desabou o poço, comigo lá dentro” quando o senhor marido da senhora patroa (ladra dos meus sonhos) decidiu me chamar para o seu quarto e tirar a minha humilde capulana. Ele era bem grande e o meu grito não me saiu da boca (gritos profundos), foi uma dor física e psicológica tão profunda que se me congelaram as lágrimas; só pensava na minha inocência e como roubara o marido da minha senhora patroa (ladra dos meus sonhos). E ele ameaçava-me prender se ela viesse a saber.
Bem assustada ficava no silêncio, nem dava para contar para meus pais. Não tinha a quem contar, todos os dias aquele homem trepava pelo meu sagrado corpo, e eu já não me sentia uma criança, mas um objecto que usavam lá em casa e a quem davam um nome tão bonito: Secretária.
Não tardei muito a ficar doente, ao que ninguém ligava, e ninguém me levou ao hospital até no dia em que sucumbi, de tanta dor e das maldades que vivia naquela casa. Ao acordar no hospital falaram me de tensão alta. Quando sai do hospital só fiquei dois dias na casa, após o que me levaram à Junta, sendo
essa a segunda vez em que subi a uma máquina com rodas, desta vez com muita gente. Voltava para a casa dos meus pais, amargurada com o suposto casamento com o senhor barrigudo-barbudo.
Chegada à terra natal era vista como se fosse muito linda, por voltar de Maputo.
O meu pai negociou logo o casamento, segundo ele os antepassados queriam aquilo (embora nada desse certo na minha vida) e a minha mãe concordou.
E lá fui eu recambiada para o lar ainda criança.
MIMI E O LIXO
TEXTO: TÂNIA PEREIRA
ILUSTRAÇÕES: LEILA MAHUMANE
Mimi acabava de ver o filme Procurando Dory quando a sua mãe a convidou para irem ver o mar.
– Vamos aproveitar, que o sol está amistoso, e vamos para a praia!
– Vamos mãe, vamos. Eu adoro o mar.
De facto a Mimi adora o mar, a água, os animais e a natureza. É um orgulho para a mamãe.
Passado pouco tempo lá estavam elas na praia. Quando…
– Mãe, porque é que esta praia está assim tao suja? Quem deixou este lixo todo?
Tantas garrafas e, olha mãe, tem garrafas partidas. E este plástico todo? Quem fez isto mamãe?
– Meu amor, há muita gente adulta que faz isso. Vem pra a praia divertir-se não tem o cuidado de retirar o lixo que eles mesmo produzem. Comem e deitam os restos na areia, bebem e deitam as garrafas plásticas ou em vidro na areia da praia, alguns até partem as garrafas e nem se preocupam se isso vai ou não cortar o pé do próximo visitante da praia, que pode ser um adulto ou uma criança.
– Tem cuidado filha, continuou a mãe, não tires os teus chinelos senão ainda cortas os pés. – Que feio isto mãe. Podemos tirar este lixo daqui?
– Podemos sim filha.
E lá foram, mãe e filha limpar a praia. Mas era tanto lixo que não conseguiram limpar a praia sozinhas.
Seguidamente a mãe da Mimi fez algumas fotos da praia naquele estado e partilhou nas redes sociais pedindo ajuda as pessoas que limpassem a praia e tivessem mais cuidado com a forma como utilizam as praias.
– Vamos para água mãe, quero molhar os pés. Deixas-me?
– Sim filhota – vamos.
De repente a Mimi ouve uma vozinha bem fina e distante…
– Mimi, Mimi, sou eu a Dory!
– Hmmhmmmm! Quem me chama?
– É a Dory!
– Dory? Como tu estás aqui se eu acabei de te ver no filme há pouco tempo?
– Eu tenho andado pelo mundo inteiro, Mimi, e vim parar a esta praia. Que bom que te vejo aqui. Ajudas me por favor? Tenho um plástico atado à minha cauda.
– Mãe, gritou a Mimi, a Dory está aqui. Ela precisa de ajuda!
Lá foi a mãe e viu a Dory com um plástico atado à sua cauda. Tirou com cuidadinho e colocou a Dory de volta pra o mar.
– Muito obrigada, muito obrigada dizia a Dory. E por favor, não deitem lixo ao mar. Ele faz-nos muito mal, disse a Dory em lágrimas. Tenho amigas minhas que já morreram por engolir plásticos que os homens deitam ao mar.
Não façam isso por favor.
A Mimi jurou que nunca iria fazer isso e que nunca iria deixar que alguém jogasse lixo ao mar, na areia ou na estrada. Ela seria a guardiã do meio ambiente.
– Dory, eu vou cuidar de ti. Sempre que estiveres em apuros chama-me. Eu adoro-te. Sabes que tenho uma Dory de pelúcia que dorme comigo?
– Adorei conhecer-te Mimi, fico feliz em saber que já gostavas de mim antes mesmo de me conhecer pessoalmente. Vou andar por aqui por algum tempo e depois vou a Vilanculos.
– Sério Dory? Eu e a minha família também vamos lá passar as férias. Espero que nessa altura possa voltar a ver-te – disse a Mimi coberta de felicidade.
Cuida-te por favor, Dory, terminou.
A Mimi entrou para a água enquanto pensava: preciso de falar com todos os meus amigos e primos, ninguém deve deitar o lixo na praia nem na estrada.
Quando terminaram de aproveitar o mar, a Mimi e a mãe, regressaram para casa. No caminho a mãe disse:
– Sabes filha, é muito importante cuidar do meio ambiente.
– Mãe o que significa cuidar do meio ambiente?
– Cuidar do meio ambiente significa cuidar de nós mesmos, dos nossos familiares e amigos; dos nossos animais de estimação e dos demais seres vivos, da nossa casa, da escola, da água, das árvores, do solo, do ar que respiramos, enfim, de tudo. Quando nós prejudicamos o mar, prejudicamos os animais que lá vivem e prejudicamos os alimentos que comemos. Quando cortamos as árvores prejudicamos a todos, pois ficamos com menos sombra, menos oxigénio e menos vida na terra. Por isso é que e muito importante cuidar do meio ambiente.
– Devemos ser os guardiões do meio ambiente, continuou a mamãe. O mundo pode contar contigo?
– Claro mãe, nunca vou deixar que as pessoas próximas a mim façam mal aos peixes, as tartarugas e outros animais que estão no mar. Eu vou sempre pedir a elas para que nunca deitem lixo na praia.
– Perfeito filha, estou muito orgulhosa de ti!
O mundo pode ser um lugar melhor se todos nos cuidarmos do meio ambiente.
Podemos contar contigo?
WENDZI DE GUARDA-FOGO
I
O menininho Wendzi havia sonhado com fogo mas quando acordou não contou isso à mãe, até porque já havia adivinhado que a mãe Leidita preparava o seu aniversário desde cedo e estava ansioso. Os olhos brilhavam-lhe como estrelas e sentiu o calor do fogo. Então decidiu contar o sonho à mãe:
– Mãe eu sonhava com fogo, ontem…
Mãezinha Leidita demorou um tempinho para responder ao garotinho Wendzi.
Tinha as mãos ocupadas a amassar a massa dos bolinhos, mas respondeu carinhosamente:
– Filho, o certo a ser dito é sonhei.
Wendzi havia-se esquecido da gramática, coisinhas adultas que não podiam ser ignoradas. Já o alfabeto estava presente no seu espírito e Wendzi cantava-o, de A a Z.
A mãezinha questionou-o acerca das consonantes e ele disse alto: A, E, I, O e U.
Ela bateu as palmas pois Wendzi já dominava as vogais e consonantes. Contra o costume do rádio nada saía. E a luz onde tinha ido? – pensou o pequenito Wendzi, nesse seu dia de aniversário, 3 de fevereiro. A mãezinha retorquiu:
– Filho, houve um corte na eletricidade.
– Mãe, a luz não fugiu, aliás a eletricidade?
– Não meu filhinho.
À tarde o sol ganhou raios grandiosos, mas a festa estava longe de acontecer.
Wendzi ficou triste, só lhe vinham lágrimas aos olhos. A mãezinha prometeu-lhe que seria um aniversário muito bonito, de bolinhos e de fritos cheios de creme de chocolate e caramelo. O meninho Wendzi arregalou os olhos. A mãe trouxe os bolinhos na peneira amarelinha, estavam quentinhos e havia uma vela acesa ao meio. Wendzi inchou as bochechas e soprou.
– Parabéns a você!
O sorriso era a grande poesia na face do menino. Chorou de alegria, fazia seus cinco anos. A mãe perguntou-lhe por quê chorava, e ele respondeu aos soluços:
– Meus amigos não estão aqui para festejar.
As suas mãozinhas guardavam tantos bolinhos coloridos – como gostaria de os dar aos seus amigos da vila! Wendzi guardou-os, na esperança de dias depois repartir com seus amiguinhos. A mãezinha alegre, ajudou-lhe, enquanto lá fora um grande barulho surgiu. Da janela via-se uma cor amarela e flamejante.
Wendzi teve um susto enorme. Era como no sonho, a imagem da premonição.
– O que foi mãe?
– Vamos fugir filho. A guerra está chegando!
E juntos sairam, Wendzi não conseguia andar tão rápido, os seus passos eram pequenitos. Na vila Mocímboa da Praia havia esses homens que apagavam as festas e queimavam sonhos. A mãezinha nunca contara ao Wendzi que o país entrara recentemente numa guerra. Ao longe viam-se carros, chegando. Homens sem cor destruindo tudo que fora erguido com suor.
– Mãezinha, não teremos casa?
– Wendzi silêncio. O barulho chama a atenção desses animais.
O fogo começou a mostrar os seus dentes, comendo tudo que existia. A mãezinha pô-lo ao colo, e Wendzi tremia de medo, incomodado pelo feixe de paus que a mão segurava no outro braço e que lhe irritavam os pezinhos descalços.
Os carros aproximavam-se. As luzes do carro eram tão potentes que revelavam o esconderijo deles. A mãezinha correu muito, até na sua frente surgir um outro carro, repentinamente. Os dois gritaram. Um soldado desceu.
– Senhora por quê foge?
– Tenho medo de guerras – respondeu a mãezinha, cheia de soluços.
II
O homem carregou-os contra a vontade deles, Wendzi já fora instruído a manter-se em silêncio: na guerra os filhos nunca atrapalham desde que fiquem em silêncio.
Mas Wendzi não suportou e gritou, ao ver sua mãe sendo levada para morte.
O grito foi forte e coincidiu com os tiros e o uivado dos soldados. Os carros foram. A poeira vestiu-o com uma nova tristeza.
O meninho Wendzi correu mas não conseguiu alcançar o carro. Em Mocímboa da Praia, a terra deixou de ter as cores dos seus lápis. As cinzas ocuparam todas as casas. Era tudo o que a guerra oferecia aos homens.
Wendzi cansou-se de andar procurando sua mãe entre os escombros, coitadinho não chegava a sossegar o choro. Os meninos amam suas mães com muito mais Amor que o tamanho do universo. Cansado, sentou-se no areal e olhou para o Céu, havia estrelas mais brilhantes e cadentes por lá e perguntou-se:
– Mãezinha está lá com as estrelas?
Ninguém respondeu, até mesmo o vento calou. Wendzi rebolou no chão até sentir algo por debaixo da coluna. Algo liso e escorregadio nas suas costas, era um espelho grande, do seu tamanho. Wendzi irritado via sua cara triste e cogitou, Os espelhos não conseguem despir a tristeza no mundo.
E disse para seu reflexo:
– O espelho às vezes é tão mau.
Uma voz grossa devolveu em resposta:
– Nós somos a cópia da realidade menino!
Wendzi assustou-se, o medo era grande, que tremia sem parar.
– Como pode o espelho falar?
O espelho não tinha rosto e nunca falará. Aproximou-se novamente do espelho.
Espreitou-o vaga-rosa-mente. O espelho voltou a erguer a sua voz grossa e simpática:
– Wendzi não tenha medo. Eu não como crianças. Eu dou força para elas, e tudo que quiserem.
O Wendzi ficou ainda mais confuso. Primeiro um espelho falante, que depois concede os desejos aos meninhos. Lembrou-se do conselho da mãe:
– Não confie em estranhos meu filho.
Wendzi pensou e concluiu que afinal não era um homem, era um simples espelho, então não havia razão para ser desconfiado ou temê-lo. Ganhou coragem e perguntou:
– Qual é seu nome?
A voz respondeu:
– Eu sou o Espelho da Paz. Olha para mim menino e veja como seria aqui na Mocimboa, sem guerra.
O espelho mostrou imagens nítidas de pessoas sorrindo, em convívio, gente sem medo de guerra. Tudo estava em ordem, sem nenhuma arma. E disse para wendzi:
– A culpa é do homem que usa fogo para fazer o mal.
– E agora espelho meu, como o mundo vai melhorar?
– Vai melhorar se você aceitar o meu pedido?
– Qual é o pedido?
– Diga a todos que a paz ainda é possível!
Wendzi concordou imediaramente com o pedido, só para não deixar triste o espelho. Ninguém acreditaria nessa história. Todo o mundo haveria de rir-se na sua cara, pensou.
O espelho pediu-lhe para olhar para o sul, onde estava uma fogueira:
– Vá até ela, e declame uma poesia.
Wendzi achou engraçada a ideia. Foi-se aproximando da fogueira, em chegando perto sentiu o seu halo quente e receava que o fogo o queimasse. O Espelho da Paz sossegou-o:
– Não tenha medo, declame sua poesia.
Wendzi ficava assustado com tudo. Seria um sonho? Uma maldição?
A sua mente não se lembrava de nenhuma poesia. É sempre difícil recordar alguma coisa quando se estamos perto de nos queimarmos. O espelho continuou a encorajá-lo.
– Vai Wendzi, declame!
Wendzi finalmente recordou-se da poesia que sua mãe cantava, e declamou: …”as nuvens de sábado são algodões, o rio que cobre os menininhos são sonhos do futuro… as crianças são flores que nunca murcham”
O resto da poesia não recordava. De repente sentiu que o fogo lhe cobria o corpo por inteiro, dos pés à cabeça. O meninho Wendzi gritou ao estranho acontecimento e, o seu corpo não doía, pelo contrário, havia nele uma grande força.
O espelho sorriu, dizendo:
– Agora és Wendzi, o Guarda-fogo!
– Por onde fores nenhum fogo ou bala irá atingir você e quem estiver do seu lado sobreviverá.
III
Wendzi, ao amanhecer, despediu-se do Espelho. E prometeu ir buscar gente inocente. O Espelho da Paz, preveniu-o:
– Esse dom não pode ser usado para o mal, Wendzi.
Ele anuiu e arrepiou caminho. Ao longo da estrada sucediam-se as casas já ardidas, cobertas de cinza, e foi perguntando pelos sobreviventes e onde estaria o grupo de guerra. Infelizmente ninguém sabia.
Passaram dias, e o Wendzi continuava confuso, se o fogo era o dom real ou se não passava de um mal-entendido. Ao longo dos dias vagueava, comendo o que achava pelo caminho. Das mangueiras tirava belas mangas e da comida abandonada à pressa pelos foragidos aproveitava sobretudo as bolachas. Os dias iam passando e nenhuma prova lhe chegava do que fora dito.
Um belo dia, já ele pensava que a guerra havia acabado, viu ao longe os militares que levavam sobreviventes para cidade. Decidiu ir contar sobre o desaparecimento de sua mãe. Havia muitas pessoas recebendo comida, e ele até tinha fome mas não se importou, queria era contar ao comandante o que havia acontecido. Contudo, ao chegar onde estava o comandante, teve receio e pensou: os adultos pouco ouvem as crianças. Desistiu do plano.
De outro lado, regressavam militares apressados, contando ao comandante que os guerrilheiros regressavam em força e bem armados. Em poucos segundos instalou-se a guerra. Os tiros faziam as pessoas esconderem-se. Muitos gritavam socorro, e Wendzi viu surgirem as chamas no seu corpo, chamas azuladas, que depois mudavam para amarelo. As balas não atingiam o seu corpo. O inimigo não acreditava no que via, mesmo diante do estranho fenómeno, e disparavam até as balas acabarem.
Com o assombro, o inimigo acabou por recuar sem ter queimado ou matado ninguém. O comandante Pascoal chamou Wendzi para que lhe contasse a história dos seus super-poderes. Wendzi pouco disse, só revelou que era um dom da Paz. Os dias foram passando e o inimigo cada vez mais fraco era derrotado.
No batalhão do inimigo havia muitas mulheres sequestradas. A mais bela era Leidita, a mãezinha de Wendzi. Os Inimigos descobriram que o menino Guarda-fogo era seu único filho. E aí que o Rei Sombra foi falar com a Leidita. Era um homem enorme e velho como a idade do tempo. Tamborilava na careca com a ponta dos seus longos dedos e observava para a mãezinha:
– Leidita, o seu filho Wendzi Guarda-fogo está acabando com a guerra.
Leidita tremeu de emoção. Pensava que o filho morrera. Essa noticia reanimava-a. E perguntou para o Rei Sombra:
– Como pode um menino trazer a paz para os adultos?
O Rei Sombra sentou-se e sacudiu a cabeça dizendo:
– Verás com os teus olhos como o menino faz.
A Mocímboa da Praia voltou a crescer. Linda e esverdejante. As pessoas puderam continuar as suas vidas. Reabriram as escolas e serviços. Wendzi foi viver no acampamento de crianças órfãs. Ele rejeitou os prémios concedidos, por proteger a Pátria. A televisão e rádios de todo mundo queriam saber como fora a Paz alcançada através de um menino. Durante muito Tempo, Wendzi rejeitou qualquer entrevista, embora nenhum jornalista voltasse a casa de mãos vazias. Havia testemunhas do caso, velhos, jovens e crianças que revelavam o poder de Wenzdi.
Certo dia, o Inimigo regressou. O Rei Sombra trouxe Leidita novamente à aldeia. Desta vez, chegavam com a Promessa de matar a mãe de Wenzdi. E assim foi o dia mais feliz para Wendzi: o coração ardeu-lhe ao ver a sua mãe viva. E esse foi também um dia tristérrimo, pois fora anunciado que matariam a sua mãe.
O rei Sombra chegou armado até aos dentes. E perguntou em voz alta:
– Onde está o Wendzi Guarda-fogo?
Ninguém respondeu. Todos sabiam que o Inimigo não podia mais. E novamente o Rei Sombra alteou a sua voz pesada e triste, e desta Wendzi respondeu:
– Aqui estou eu senhor Sombra.
O sorriso do Rei Sombra escancarou-se, deixando ver os seus dentes afiados e metálicos. Trazia a sua mãe e pedia em troca o dom do Wendzi. Este respondeu-lhe:
– Esse dom não é para o Mal
O Rei Sombra irritou-se e disse:
– Eu queimarei sua mãe. Dê-me o segredo desse poder, já! Me mostre onde está o Espelho da Paz!
Ninguém entendia o que os dois falavam. Era certo que o Rei Sombra soubera do Espelho antes mesmo do Wendzi nascer. Do outro lado, Leidita acenava para o Wendzi não entregar o Segredo do Guarda-fogo. O Sombra então cobriu a Leidita de palha e molhou com gasolina. Em frente, Wendzi sentia-se devastado, sem saber o que fazer. Pensou em contar que o Espelho da Paz estava bem enterrado, a descansar, enquanto ele mantinha a Promessa de trazer a Paz.
O Rei Sombra acendeu a tocha. A mãezinha gritava, e Wendzi pediu:
– Pare. Eu darei o Segredo.
O Rei Sombra sorriu para os seus homens. E decidiu que não podia libertar a sua mãe por causa do ascendente que isso lhe dava sobre o menino. Juntos, foram aonde o espelho repousava. Palmilharam duas horas até chegarem àquele lugar que transmitia paz. O Wendzi clamou:
– Espelho da Paz. O Inimigo me encontrou.
Ninguém respondeu. Wendzi estava cada vez nervoso e as chamas brotavam do seu corpo, lentamente. O Rei Sombra exasperou-se e afirmou: ´
– És um mentiroso!
E ordenou que atirassem a sua mãezinha no poço que lá havia. Wendzi descontrolado crescia como uma explosão gigante. Chorava fogo. E doutro lado ouviu um sussurro amável dizendo:
– Não tenhas medo Wendzi.
Era o espelho que logo foi identificado pelos guerreiros de Sombra que logo disseram a uma voz:
– Chefe está aí o Espelho da Paz.
O Rei Sombra chegou até ao Espelho e disse:
– Espelho falso!
– Mentiste-me como agora fazes para esse pobre menino Wendzi acalmava enquanto todo o mundo olhava o Rei Sombra a discutir com o Espelho da Paz, que muito límpido se suspendia no ar:
– Tu tinhas o Poder da Luz. E escolheste o Mal, por isso viraste Sombra. Algo sem vida ou corpo – disse o Espelho – Eu quero de volta meu corpo e o dom de Guarda-fogo para mim. Caso contrário matarei a Leidita, mãe do meninho Guarda-fogo.
Wendzi olhou para o Espelho, e não encontrou nada para dizer. O Espelho replicou:
– Vai Sombra, mata-a!
Wendzi gritou. A mãe chorava de desespero, enquanto os homens a arrastavam para o poço. Mas umas letras incandescentes desciam do céu. Eram os versos da poesia declamada por Wendzi para ter o poder:
…”as nuvens de sábado são algodões,
o rio que cobre os menininhos são sonhos do futuro… as crianças são flores que nunca murcham”
E era a sua voz que trazia paz. Ninguém entendeu o mistério. O Sombra voltava a ter corpo humano enquanto Wendzi, furioso, escamava o fogo no seu corpo. Do outro lado, o Rei Sombra ordenava:
– Coloquem-na no poço. Agora sou um Guarda-fogo.
Os homens do Sombra sentiam os seus corpos a perder peso. Em pouco tempo tornavam-se sombras, e sem corpo deixaram cair a mãe de Wendzi no chão, sem chegar ao poço.
Os soldados agora lamentavam, que eram sombras. O Rei Sombra admirou-se com a transformação. Seus homens eram-lhe inúteis agora. E o Espelho da Paz sentenciou que o Rei Sombra passaria a ser fogo, pois assim o pedira. O Rei Sombra começou a arder, mas rebolando-se com a dor que sentia. Estava perdido.
E o Espelho da Paz comentou para Wendzi:
– Maravilhoso menino. Não usou o poder para matar por quê?
Wendzi sorrindo retorquiu:
– O meu dom é para a Paz!
O Espelho sorriu e questionou-o:
– Agora o que faremos com as Sombras?
O meninho Wendzi pediu que o Espelho da Paz, ensinasse aos homens da Mocímboa da Praia a ser novamente Homens de Paz.
E assim foi, para sempre, ensinado o Bem contra o Mal. E foram todas as épocas alegres, espalhando a Paz em Moçambique.
Veja a colectânea completa em versão pdf.
Njinguiritane - Colectânea de Contos (Volume II)
Título: Njinguiritane – Colectânea de Contos (Volume II)
Coordenação: FEC | Fundação Fé e Cooperação
Redacção: Abel Manhique, Ercínio Tembe, Tânia Pereira, Stélio Felipe e Tarcísio Maposse
Colaboração: António Cabrita e Alexandre Dunduro
Revisão: António Cabrita e Alexandre Dunduro
Ilustração: Helena António, Leila João, Luís Macussete e Sérgio Mulungo
Design gráfico e paginação: Diogo Lencastre
Editor: FEC | Fundação Fé e Cooperação
Local de Edição: Lisboa
Data de Edição: Março de 2022
PROVASTE-ME VIDA QUE NÃO ÉS UM MAR DE ROSA
TEXTO: JOÃO MATEUS LUÍS JÚNIOR
ILUSTRAÇÕES: VENTURA ZUCULA
Deixa-me voar
voar e cantar para o mundo
esse mundo que tenho de explorar
nas mil e uma faces
dessa escola
que é viver num aprender
sem mestre.
Como entristece
que nos forcem a excitação
sem antes ter amado
e a casar
sem ter anelado –
oh, por favor, deixa-me ser criança!
Será que ninguém vê os meus direitos
serem atropelados nessa estrada
que chamavam de infância,
menos pelo Tio Antoninho
que em mim só via as coxas
e o guisado com que o servia
e apaparicava
no seu quartinho amaldiçoado.
Veem em mim não a criança
mas uma escrava à maneira
sem se preocuparem com as lágrimas
da minha vida dolorosa.
Deixa-me voar e cantar para o mundo,
chamam de vida ao que te ensina
a sobreviver e não a viver,
e agora para o mundo
tenho de cantar esta história triste
de uma mãe que chora e clama
pela juventude
da filha que foi abusada
para só depois ver reclamados
os seus direitos.
Ah, deixa-me voar pela infância
combater a gravidez viver a meninice
em vez de me tornar mãe aos dez
que aos dezasseis
serei já mãe sem pai
ou com o pai sem emprego
ou terei um emprego sem salário
talvez com bacela, mas sem formação.
Maldita beleza, fez de mim
uma princesa sem reino,
a sua palma descia suavemente
pela tristeza da minha pele
e não respeitavas as lombas, as curvas…
Só me empurrava para as mais escuras vias
e não via como chorava.
A maçã foi mordida –
ah, quem agora tem controlo?
A situação cavou o abismo mais fundo
de quem larga a escola e hoje
tem a mão aprisionada nesta cela
sem gostar de lá estar.
E ainda tem de lhe chamar lar,
doce lar amargo –
estava lá o meu cérebro preparado!
Deixa-me voar livremente pelos ares
sem predadores
deixa-me abanar as minhas asas,
em vez duma jaula dê-me uma casa
com pai e não esposo e nem erectos
que o fazem e negam
a responsabilidade –
deixa-me ser criança!
A HISTÓRIA DE INOCÊNCIA
TEXTO: LAYBE JUDITE CUNAMA
ILUSTRAÇÕES: ERNESTO LUCAS POLÁ
Era uma vez, numa zona suburbana, uma menina de quinze anos, que era linda, prestável e muito responsável… Tinha esta rapariga dois irmãos, a Flora e o Florêncio. A Flora é esperta como um alho, com somente onze anos já havia ganhado um concurso de culinária organizado no seu bairro, o Florêncio é apenas um rapazola patusco de sete anos que só sabe brincar, sendo o mais reinadio da turma, mas diga-se que não fica nada a dever em inteligência à irmã.
A Inocência por ser a mais velha e estar a caminho da juventude é quem ficava sempre com os seus irmãos, porque a Dona Generosa, a mãe deles, era uma simples servente num hospital da cidade e os seus turnos eram quase sempre nocturnos. O pai falecera quando o Florêncio tinha somente dois anos, daí que este não se lembrasse nada dele, mas pelo menos deixara-lhes uma casa de tipo 3; a única riqueza que eles possuem. A Inocência madrugava todos os dias para preparar o alimento “Xiquento” para o seu irmão e para ela; já a Flora continuava a dormir por ser diferente o seu horário de entrada na escola, depois acordava e arrumava a casa juntamente com a sua mãe que, mesmo cansada, nunca deixava a lida da sua casa para segundo plano.
A Inocência chegava quase sempre atrasada à escola, que era muito longe da sua casa. Ralhava o professor de história: Menina, fica aí fora, já estamos completos!
E assim ela raramente entrava no 1º tempo. Nos intervalos ela sempre pedia a um colega os apontamentos do 1º tempo e participava sempre nas demais aulas.
Contudo, a Inocência não possuía livros, só carregava na sua sacola cadernos de capa leve, uma caneta e uma garrafa de água… Quando os professores mandavam comprar fichas ela cismava em silêncio, porque nem coragem tinha para pedir à sua mãe alguma moeda, ciente de que a sua mãe não tinha mesmo. E só uma por outra ficha é que ela conseguia comprar, com a ajuda dos seus colegas.
Um certo dia o seu vizinho, o “tio Januário”, fez-lhe uma proposta e ela ficou espantada por ouvir aquilo e recusou-se. Mas o Tito Januário não desistiu, e insistia, dizendo: Menina porque ficas aí nessa pobreza, que esperas tu? Há lá fora um mundo que te espera: tu és linda, charmosa, formosa ninguém vai te aguentar…
Ela reservava-se, afastando-se da presença dele, mas já não conseguia dormir, pensando nas palavras tentadoras do Sr. Januário que lhe entravam como um parafuso.
Infelizmente a sua mãe, a dona Generosa, ficou doente e em pouco tempo haveria de perder o emprego, por já não conseguir deslocar-se, e embora os seus colegas nunca deixassem de a ajudar no desamparo, há um limite para tudo… E mais uma vez aparecia o Sr. Januário, a tentá-la: Menina porque és tão orgulhosa? Vês a tua mãe querida a sofrer e tu aí parada, dependendo das misérias que as pessoas vos trazem, venha comigo….
A Inocência chorou baba e ranho, mas naquela mesma noite enquanto todos dormiam despediu-se da sua irmã Flora e pediu, Cuida da mamã e do nosso irmão, volto logo! A Flora interrogou-a, espantada, Para onde vais a esta hora?
E ela respondeu: Cuida da mamã e do mano, eu vou atrás da nossa solução. E foi para a estrada.
Chegando ao seu triste destino, Inocência estava uma pilha de nervos, enquanto os carros que passavam por ela a vestiam de luzes. Nervosa, ansiosa, inconsolável, andava para trás e para cima na estrada escura, acenando aos carros. E com ela estavam outras raparigas, cada uma com a sua história, todas igualmente tristes. E foram parando os homens, com palavras ora doces ora amargas, e mostrando-lhe que não lhes faltava dinheiro na carteira. E aí começou o trabalho de Inocência, também por turnos.
Pobre rapariga.
Logo de manhazinha, a Inocência chegou a casa, triste, mas com um saco de comida e algum dinheiro. Passaram assim a ser as suas noites. De dia dormia, cansada demais para poder frequentar a escola. Para mais, a zona toda ficou a saber da profissão que a menina exercia e desprezavam-na por isso, davam-lhe alcunhas, diziam que ela era da má vida, pois era. Como em tantos casos não foi por livre e espontânea vontade que a Inocência tal se tornou, mas infelizmente só através desse trabalho encontra sustento para si e a sua família.
Inocente é a Inocência, no entanto, à vista de todos a menina é agora uma prostituta. DE quem é a culpa?
EM BUSCA DA PAZ
TEXTO: NABYLAH SULEMANE GULY
ILUSTRAÇÕES: ERNESTO GUAMBE
Capitulo 1
Os tempos estavam sombrios, naquela terra, onde as famílias mais distintas insistiam em destruir-se umas às outras. Mas havia quem não participasse de tais conflitos e que, por esse motivo, eram os mais afetados pelas acções das famílias guerreiras. Várias famílias pacíficas perderam tudo, passavam fome, viam um dos seus morrer nas guerrilhas, choravam pelo sofrimento que mal conseguiam aguentar. Pessoas morriam dia após dia por causa daquela contenda.
Por causa de motivos descabidos, por causa de amor, mas principalmente, por causa de ideias de superioridade. E pelos vistos, não iria acabar tão já.
Basta! Basta destas guerras sem sentido, Parem de lutar, parem de temer-se uns aos outros. Acham que isto é viver? Chega de destruir a nossa Terra, a nossa casa. — gritava Bella, a sucessora do falecido governante da cidade.
Todos os dias, Bella caminhava até à cidade e repetia as mesmas palavras, vezes sem conta, em todas as praças e jardins. E mesmo não resolvendo absolutamente nada, ela persistia sem desfalecer, ela queria governar aquela Terra como ninguém antes governara, trazer a Paz que seu pai nunca alcançara.
Mas, por vezes afigurava-se-lhe mais difícil do que colocar um animal a falar. Ela jamais pensara que seria assim tão árduo estar no poder, ela sempre quis, mas agora, sentia-se prestes a desistir, prestes a desabar, já não aguentava mais parar as guerras, findar as greves, acalmar a fome. Estava cansada, era como se a sua chama interior estivesse a dissipar-se, embora sabendo que, se parasse,
mais ninguém faria o seu trabalho. – Vossa Excelência, continue, não desista.
Nós precisamos de si, precisamos do seu apoio, da sua ajuda, do seu optimismo.
— Gritavam alguns dos cidadãos que a ouviam!
Isso era tudo que Bella precisava de ouvir para continuar, era tudo o que ela queria, ver que os seus esforços eram visíveis, que a escutavam e compreendiam.
E assim, um sorriso cintilante e alegre nasceu em seus lábios.
– Eu irei, prometo que não vou parar, continuarei lutando para alcançar a Paz até que o último suspiro escape dos meus lábios. Eu não vos deixarei mal, não deixarei o meu povo mal! — Disse Bella com vivacidade, inspirada e feliz. Ela estava pronta, pronta para lutar, mesmo que sangue fosse derramado.
Vera Luz, em tempos longínquos, fora o lugar em que todos queriam viver.
Era uma terra bondosa, acolhedora, pacífica e acima de tudo, ajudava quem precisava. Era considerada a Terra Mágica. Todos os que lá pisavam, ficavam encantados, fascinados pela beleza daquele rincão. As folhas das árvores vibravam como cristais esverdeados contra a luz, os seus frutos eram mais doces e saborosos do que o açúcar, havia flores de todas as espécies, das mais belas e raras que davam um aroma divino ao lugar, os animais eram felizes e fofos.
As crianças eram livres, sorridentes, tal como os adultos, que trabalhavam arduamente, em conjunto, para obter um melhor resultado. Como não se encantar por uma Terra como essa? Todos se sentiam gratos e se entreajudavam.
Porém, essa sociedade unida, que levou anos para ser alcançada, destruiu-se em segundos.
O motivo? Manias de superioridade, a ganância. Uma parte da sociedade sentia-se superior em relação à outra, queria ganhar mais, ter mais. Justificavam, Eu sou superior, devo receber mais, e porque Eu sou superior, devo odiar os de baixo, não devo envolver-me, não devo me aproximar. Eu sou superior, eu sou o maior, ninguém é mais poderoso do que eu!
Foi isso que algumas pessoas começaram a sentir, foi isso que arruinou aquela terra de bondade. Os considerados inferiores não se deixaram abalar, não aceitaram tais modos de tratamento e rebateram querendo justiça. Deste modo, as pessoas daquela Terra começaram a apontar-se dedos, a falar mal umas das outras, a criar conflitos, a destruir amizades. Assim, vizinhos e famílias começaram a odiar-se, mutuamente, e, simplesmente, por não se suportarem, começaram a tentar destruir-se. Para eles aquela relação era normal, eles não eram os afetados. Os campos foram abandonados, o trabalho foi deixado de lado, as árvores começaram a morrer, as flores a murchar, os animais a desaparecer e as pessoas começaram a abandonar a Terra, a fugir. A fome foi criada pela falta de produção, os alimentos eram deixados de parte, quem amealhara vivia, quem não tinha passava fome até a morte chegar. Bonito, não é? Criar conflitos por motivos inúteis e fazer pessoas morrerem por considerarem-nos inferiores. Ninguém é inferior ao outro, Deus fez-nos a todos de maneira igual, e ninguém deveria julgar outra pessoa pela sua aparência. Deveríamo-nos respeitar, agir como irmãos, saber conviver e partilhar, mas parecia impossível.
Vera Luz mudou de uma terra de bondade, para uma terra de ódio e desrespeito. Ninguém pisava naquele local, todos os que por lá transitavam não se atreviam sequer a espreitar para aqueles campos mortos e secos. E tudo piorou quando Layna Hollynd nasceu, foi aí que as guerras entre as duas famílias citadas se intensificaram ao extremo. O ódio acirrou-se, a febre dos que julgavam superiores tomou conta de tudo, a ganância abrangiu todos e a fome virou o significado da morte. E as famílias em litígio recrutaram vários outros grupos para o seu lado. Já não havia amizade naquela terra, e a única esperança para os que sofriam, era Bella Stacy, a rapariga de ouro.
Capítulo 2
E essa guerra entre essas duas famílias deve-se a quê? É o que estás a perguntar-te? O tempo passou e digamos que o clamor da guerra se havia atenuado, e que a pequena Layna havia crescido, se tornara uma mulher; não obstante, infeliz ou felizmente, desenvolveu uma paixão intensa por Andrew, filho da família inimigo, e por esse motivo, ela foi proibida de sair de casa, ou só podia fazê-lo acompanhada e interditando-se de olhar para os lados, enquanto andava. O seu interior roía-se de dor e mágoa, ela queria encontrar Andy o mais rápido possível, queria sentir o seu cheiro, o seu toque, mas era simplesmente impossível. Vigiavam a pobre rapariga vinte e quatro horas por dia, era como se estivesse presa na sua própria casa, os seus olhos estavam fatigados de focar sempre as mesmas coisas, as mesmas pessoas, o seu corpo estava dormente de ficar parado e o seu coração se apertava de dor, enquanto o bolbo da sua chama interior se acendia cada vez mais e queimava o seu corpo por inteiro, a sua paixão percorria as suas veias no lugar do seu sangue, mas ela não podia fazer nada perante essas vontades imensas, e todas as noites rezava para que se conseguisse formalizar a Paz entre a sua família e de seu amado.
Paz, paz, paz! Era tudo o que todos queriam. Era a Paz que todos desejavam. E não esquecendo que devido a essa paixão entre Andrew e Layna, as guerras se haviam intensificado, naquelas planícies e vales campeavam as batalhas, os regimentos de mortes. Quando os dois jovens se apaixonaram, a família Matthew tinha acabado de chegar à cidade, pouco depois do nascimento de Layna;
ambos haviam crescido em estreito convívio e com o passar do tempo, apaixonaram-se. Mas a família dele fora a única família que desde longos tempos sobressaía em Vera Luz, o que os tornava estimados pelo povo e fez com que eles ganhassem aliados.
Eles eram muito abastados, tinham tudo e mais um pouco, e em vez de serem piedosos com os outros, ajudarem os necessitados e misturarem-se com os denominados “Inferiores”, fizerem simplesmente o contrário. Ao verem como os solos estavam exauridos, como as pessoas estavam necessitadas, eles viram aí uma oportunidade para tomar vantagens e sentiram-se excelsos, sentiram-se os donos de Vera Luz; sensação que crescera quando o filho querido, o principezinho, se apaixonou pela plebeia. Andrew não era igual à família, ele sabia que se aquilo fosse adiante, não iria aguentar tanto despeito e seria até capaz de fugir da sua própria casa, do seu palácio. Ele não queria, mas o seu coração falava mais alto e ele sabia que aquela guerra não era o que Deus queria, já que sua mãe dizia o contrário. Layna sofria todos os dias, todos os momentos, todos os segundos, mas não podia fazer nada, até que, pressionado pela paixão que sentia, arranjou um plano. No dia seguinte, estando Layna prestes a sair com o seu irmão, foi até seu quarto e escreveu uma carta que dizia o seguinte:
Meu querido Andrew,
Meu coração chora todas as noites por sentir a sua falta
Meus gritos são abafados pela minha dor Mas meu coração nunca pára de bater por você, meu amor. Eu não aguento mais esses conflitos, eu sinto sua falta, e hoje irei lhe ver. À meia-noite, vamos nos encontrar na Ponte da Luz. Estarei lhe aguardando, Andy.
Layna sorriu ao ver o que tinha escrito e sentiu o seu nariz fungar, mas impediu as lágrimas de escorrer, não era tempo para chorar. Assim, beijou o canto da carta com o seu gloss rosado, deixando lá a marca de seus lábios estampada, por fim dobrou o papel amarelado e guardou-o na fita branca que lhe circundava a cintura do vestido esverdeado. Nem que fosse para fugir, ela iria, bastava-lhe estar com o seu amor. Seus devaneios foram cortados, alguém batia na porta do quarto, e ela, adivinhando quem era, atendeu o seu irmão que sorria para ela.
– Minha irmã, está a ficar tarde, venha o mais depressa, estou lhe aguardando…
— Disse seu irmão e ela assentiu concordando.
– Então vamos, meu irmão. — Disse ela e esqueceu de esconder a animação que sentia, o que fez com que seu irmão a encarasse de uma maneira estranha, já que Layna nunca ficara assim tão feliz por se sentir “presa”.
– E qual seria o motivo dessa animação toda, Layna? – Ele perguntou enquanto se dirigiam à porta e ela sentiu o nervosismo percorrer seu corpo, mas sorriu mesmo assim.
– Ah, meu irmão, é porque eu já não saia de casa há tanto tempo, sinto falta do ar puro, do cantar dos pássaros, de ver as folhas das árvores esvoaçando. — disse ela ao sentir o ar quente de Vera Luz adejar no seu rosto de uma maneira tão delicada que se sentia tão leve como uma pena.
– Minha pequena, me desculpe. E eu prometo que farei de tudo para que minha caçulinha possa sair mais vezes. – Disse Ronald, e esfregou, decompondo, os cabelos negros de sua irmã mais nova. – Obrigada. — Respondeu ela, enfeixando os seus fios pretos com as duas mãos. Ambos seguiram o caminho caminhando lentamente enquanto conversavam sobre assuntos triviais, aos olhos de Layna, até que eles passaram em frente da Mansão Matthew e viram Alice sentada nas escadas do alpendre. Layna dirigiu o seu olhar para sua melhor amiga e seu olhar demonstrou que ela precisava de algo, o que fez com que Alice se levantasse das escadas a sorrir e caminhasse até eles. Ronald ficou desconfortável com a aproximação da rapariga e corou levemente, afinal, ninguém sabia por quem ele estava totalmente apaixonado desde a infância.
– Ly!!! — a loira gritou e correu para abraçar sua amiga.
– Aly!! — Layna correu para junto de Alice e abraçou-a com força. — Que saudades de você, Alice, — disse Layna, os olhos marejados, e pegou nas mãos de sua amiga.
– Eu também senti muito a sua falta, Layna! — Disse a loira enquanto chorava.
Alice era linda, uma loira de olhos azuis que lembravam o oceano e pele branca como a neve; seu corpo escultural assemelhava-se ao das deusas do antigo Egipto, embora Layna não ficasse atrás, posto que os seus olhos cor de caramelo que refulgiam como o ouro no contraste dos seus cabelos negros encantassem qualquer um; era como olhar para um céu sem estrelas com a lua cheia, e o seu corpo era tão harmonioso que de comum lhe chamavam Sereia, sem esquecer a sua pela clara que dava mais realce aos seus olhos.
Layna olhou para sua amiga com aflição e retirou com cuidado a pequena carta da barra do seu vestido, entregando de seguida à sua amiga que logo entendeu o recado. Elas abraçaram-se como nunca, porque sabiam que seria difícil tornarem a encontrar-se novamente, e no final, fizeram o aperto de mãos secreto. Estavam felizes, radiantes, mas tristes, pois tinham de despedir-se, após o que Alice franqueou as portas da mansão creme de sua família. Podia dizer-se que aquela era a casa mais bela da cidade, depois da Presidência. Era num tom de creme com detalhes castanhos e brancos que modernizavam a casa, as janelas de vidro eram mimosas com pequenos desenhos pretos a debruar as mesmas, e os portões de ferro, com grades em formato de flores diversificadas, eram ainda mais lindos. O jardim estava tão bem tratado que parecia perfeito, a relva era verde clara, as árvores tinham cores tão delicadas e carregavam flores rosadas aromáticas que davam um ar espectacular ao local. Haviam flores de espécies
incontáveis por todo o lado, de rosas a violetas azuis, a crisântemos e hibiscos e estrelícias, tanto atrás, como na frente, e as cores eram tão vivas que cativavam.
Mas o que fazia a casa ser mais bela aos olhos de Layna, era o facto de que seu amado vivia lá.
Capítulo 3
Depois de se terem encontrado com Alice, Layna e seu irmão continuaram a caminhada até ao mercado. Os olhares das pessoas na rua dirigiam-se sempre para ela, afinal, era conhecida como “a rapariga presa”. Ao ter notado os olhares de pena, tristeza, seu peito encheu-se de sentimentos negativos e tristes, mas o que podia ela fazer? Até ela própria se sentia presa, mas mesmo assim, Layna continuou a caminhar de cabeça erguida e um sorriso encantador nos lábios, algo que poucos teriam feito. A ansiedade dominava seu pensamento, ela queria saber se a sua carta já se encontrava nas mãos de seu amado. Enquanto isso, Andrew estava a voltar do mercado e, mal sabia ele, que se o destino estivesse do seu lado, se encontraria com Layna. Ele queria muito revê-la, mas sabia que se acaso num impulso se atrevesse a abraçá-la ou a passar perto dela, a informação voaria até aos ouvidos do seu pai, já que o Sr. Matthew tinha ouvidos e olhos em toda a cidade. Por isso, esse era o último pensamento que passaria pela sua mente, ele sabia o que o seu pai, aquele monstro, faria caso soubesse de tal acontecimento. Ronald estava atento a todos os olhares e movimentos vizinhos, nenhum detalhe lhe escapava, ele era uma águia que iria proteger o seu tesouro custasse o que custasse.
Por outro lado, Layna estava apreensiva, ela sabia que algo poderia acontecer a qualquer momento, ela sentia isso e por isso atentava em todos os movimentos tal como seu irmão, mas acabou por distrair-se do mais importante, o que se encontrava à sua frente. Sem ao menos esperar, querer ou desejar, ela, enquanto olhava para os lados, sentiu que o seu corpo chocava com o de outro ser humano, aquele que, mesmo que anos se passassem, ela reconheceria pelo cheiro… Era Ele.
Seus olhos percorreram o corpo inteiro do rapaz e sua cabeça inclinou-se para trás, afim de conseguir encarar os olhos de seu Andrew, e seu coração acelerou ao confirmar que era ele, o rapaz dos olhos avermelhados, do cabelo loiro. Ambos os corações começaram a bater fortemente como se estivessem a dançar, e o tempo pareceu parar para os apaixonados. Num lugar silencioso, o som destes dois batimentos poderia ser música, de tanta sintonia que havia entre eles. Simplesmente era amor, naquele olhar teciam-se mil palavras, o toque leve era mais do que suficiente, o sorriso
servira como a melhor recordação possível, e eles enfim, afastaram-se com uma dor no coração, sem dizer nem uma palavra. O irmão de Layna apenas sorriu de um modo invisível, e aproximou-se deles para afastar a sua irmã de Andrew. Ronald aproximou-se do loiro e sussurrou-lhe algo no ouvido, algo que jamais ninguém saberá, afinal, nem eu sei, Layna sorriu de canto e olhou uma última vez para o seu loiro, nesta manhã, e empolgou-se ainda mais ao lembrar de que o veria, se Deus quisesse, à meia-noite. E por fim, os irmãos continuaram a sua caminhada, a rapariga dos Olhos dourados passou por seu amado inalando seu cheiro mais uma vez, e enfim chegaram ao mercado.
O som do relógio a balançar preenchia por inteiro o quarto de Layna. A ansiedade tomara conta do seu corpo, ela só aguardava o momento em que as luzes se apagariam.
Era um quarto para a meia-noite, seus pés batucavam contra o chão, as suas mãos enrolavam freneticamente o seu vestido azul-escuro, e seus pequenos olhos dourados apresentavam uma cor ainda mais intensa do que o normal. E finalmente, as luzes são apagadas, o som das portas a serem trancadas ecoa pela casa, e por fim, um “Boa Noite” é ouvido, vindo da parte de seu pai. Ela retribui dizendo o mesmo em alto e bom som, com o sorriso mais brilhante visto até hoje.
A sua felicidade ultrapassava qualquer emoção naquele momento, e quando ouviu o som das portas dos quartos serem fechados quase pulou e gritou de alegria. Era agora, era agora que ela sentiria de verdade o toque, o cheiro, o abraço de Andrew. Layna levantou-se lentamente e caminhou até à janela, mas antes de sair, olhou uma última vez para o seu quarto. Sua cama estava cheia de almofadas tapadas pelo cobertor para que pensassem que era ela no interior, as paredes azuis decoravam-se com fotos de família, a sua cómoda de madeira pintada de branco e cheia de acessórios… Ela apenas sorriu e abriu devagar a janela para que não houvesse barulho algum. Assim que estava completamente aberta, Layana saiu e sentiu o ar fresco da meia-noite preencher-lhe os pulmões. Por dentro, ela sabia que algo iria acontecer, e não seria bom, afinal, para toda a acção há uma reacção, mas, para ela valia arriscar, mesmo que depois fosse desejar morrer. O seu pequeno corpo trajava um vestido azul-escuro como a noite, já na bainha do vestido, pequenas estrelas de tinta branca floresciam fazendo o seu vestido se parecer com o céu estrelado. O seu cabelo estava preso numa trança leve enquanto pequenos caracóis negros lhe caíam sobre a testa bailando com o movimento do vento. As suas bochechas estavam rosadas devido à porção de blush aplicada e seus olhos apresentavam um delineado preto. Parecia realmente uma plebeia que virara Princesa.
Do outro lado, Andrew já aguardava a chegada de sua amada. O mesmo decorara a Ponte da Luz com várias luzes, espalhara pétalas de rosa no chão, e carregava em suas mãos uma rosa branca avermelhada. O rapaz mal aguentava ficar parado no mesmo lugar, e por isso andava em círculos olhando de cinco em cinco minutos para o seu relógio de pulso. Andy parou de se movimentar e apoiou-se no parapeito da ponte soltando um longo suspiro. Os seus olhos encararam o azul brilhante do rio com a lua cheia reflectida, e foi ao olhar para o seu reflexo no rio que ele reparou numa silhueta ao seu lado. Um sorriso brotou-lhe nos lábios assim que ele percebeu de quem se tratava e assim afastou-se do parapeito e olhou para nada mais, nada menos que Layna, sua amada.
Capítulo 4
– Pensei que não viria. — Andrew disse encarando sua amada, fascinado. Ele nunca tinha a visto tão bela.
– Jamais lhe deixaria esperando, Andy. — Disse ela sorrindo docemente para o mesmo. Andrew caminhou até mais perto de Layna e ajoelhou-se pegando nas mãos de sua amada, ela sorrindo avistou a rosa branca na mão de Andrew e se emocionou, era a sua espécie favorita. O rapaz ergueu a rosa e entregou-a a Layna que sorriu ainda mais ao sentir o cheiro dela. Assim que ele se levantou a rapariga atirou-se para os seus braços, abraçando-o fortemente, todos os sentimentos de tristeza tinham-se evaporado, era um laço que parecia impossível de quebrar, até Andrew desviar o olhar do de Layna e encarar algo que se encontrava atrás da mesma. O seu rosto pareceu empalidecer como se tivesse visto um fantasma, mas acreditem, o que se encontrava no campo de visão do rapaz era mil vezes pior do que um simples fantasma. Layna limitara-se a seguir o olhar de Andy, e arrependeu-se instantaneamente de o ter feito. Seu rosto ficou mais branco do que já era, suas mãos tremiam como se estivesse molhada em plena neve, seu corpo perdeu os movimentos e sua boca a fala.
Nenhum dos dois sabia o que fazer e nem como agir, não sabiam como enfrentar aqueles dois homens que mais pareciam animais selvagens famintos prestes a devorá-los.
Pela cabeça de Layna passaram milhares de pensamentos, mais especificamente perguntas para as quais ela não tinha respostas. Os dois homens começaram a caminhar na direcção do casal como se fossem antropófagos, e quando chegaram em frente de ambos, o pai de Andrew limitou-se a apertar o filho pelo pescoço quase erguendo-o do chão, Layna ao ver o seu amado sofrer quis ajudá-lo e empurrou o braço do Sr. Matthew, mas recebeu em troca uma chapada forte de seu pai. O rosto dela encheu-se de lágrimas, ele mal conseguia respirar, e foi aí que o som de tiros foram ouvidos, e a camisa de Andrew ficou vermelha de sangue. O que tinha acontecido? Era o que todos se perguntavam até verem o corpo de Adam Matthew no chão e coberto de sangue, morto.
Andrew sentiu desespero, tristeza, dor e deixou pela primeira vez em anos, lágrimas rolarem por seu rosto e um grito agonizante escapar-lhe dos lábios.
Porém, tudo isso desapareceu ao ver uma bala direccionada a Layna, rapidamente, ele correu e lançou-se levando-a com ele, tendo ambos caído sobre a madeira da ponte. Não demorou muito para que os gritos de medo e desespero começassem a ecoar e as pessoas aparecessem a correr fugindo por todos os lados. Layna e Andrew levantaram-se em pânico, enquanto David Hollynd pegava na sua arma pronto para proteger sua filha. Algo na cabeça de todos estava claro, a guerra tinha reatado. O casal e o pai da rapariga despacharam-se para chegar à cidade, ou mesmo, ao actual campo de batalha.
A cidade estava um caos, as casas todas destruídas, fogo por todo lado, corpos mortos pelo chão, sangue nas paredes, o som de tiros reinava no local, as pessoas a gritarem e a fugirem, outros procurando seus filhos, estava um desastre, e era isso que acontecia todos os anos, era isso pelo qual as pessoas tinham que passar.
As pessoas da Presidência, as tropas e até a própria Bella, estavam a ajudar quem precisava, e protegiam quem conseguiam, ela arriscava a própria vida pelo seu povo, uma verdadeira líder. Andrew ainda estava abalado, mas mesmo assim, puxou a sua amada até sua casa, onde foram recebidos por Alice desesperada, que abraçou fortemente o casal enquanto derramava algumas lágrimas. O som do desespero não acalmava lá fora, o fogo aumentava, o sangue escorria nas janelas da Mansão Matthew, mas mesmo assim, tentaram manter-se calmos, – O que lhe aconteceu, meu irmão, e onde está nosso pai? – Perguntou a loira fazendo Andrew quase querer gritar novamente.
O rapaz permaneceu em silêncio sem saber o que dizer, até sua mãe, Alina Matthew, aparecer e dar de cara com Layna, seu filho ensanguentado e David na sua casa. Ela quase desmaiou ao ver seu filho daquele jeito, e correu até ele empurrando Layna no caminho.
– Meu filho, o que aconteceu, estás bem? — Perguntou a senhora loira, preocupada.
Andrew apenas assentiu e abraçou a rapariga ao seu lado. Alina soltou um grande suspiro e abraçou a sua nora, tristemente.
– Me responda, irmão. — Gritou Alice já esperando o pior. O loiro soltou um suspiro longo enquanto sentia seus olhos arderem, mas foi reconfortado com um aperto carinhoso de Layna.
– Ele… ele foi baleado… o pai morreu, Alice.
A loira e sua mãe caíram de joelhos enquanto choravam, agoniadas. Ambas se abraçaram, nenhuma das duas queria acreditar. Nesse momento uma bala entrou pela janela estilhaçando-a e muitas outras vieram seguindo, começando a destruir a casa.
– Chega! — gritou Layna exasperada, e levantou-se caminhando em direcção da porta enquanto a família Matthew gritava para que ela voltasse. Layna saiu pela porta da frente, e os tiros pararam de repente, todos os olhares dirigidos para a “rapariga presa”.
Parem! — Gritou Layna e desceu as escadas parando no meio da estrada. — Vocês não podem continuar com isso, esta guerra serve para quê? Vocês só estão a magoar-se cada vez mais, já viram quantos corpos mortos estão deitados por aí? Quantas pessoas mataram hoje, e nas guerras anteriores? Porque é que não aceitam que nenhum de vocês é superior ao outro? Que somos todos iguais, que somos todos família? — Disse chamando a atenção de todos e fazendo com que as pessoas deixassem cair as suas armas. — Somos seres humanos, erramos todos os dias, mas, matar não é algo que se possa perdoar.
Vocês estão a destruir-se, estão a destruir a nossa casa. Superioridade, ganância, inveja? É isso? Acham isso um motivo para criar guerras? Somos adultos, e temos a habilidade de falar, deveríamos conversar, entender-nos e não matar-nos. Quem disse que tu és superior a ele? — Apontou para duas pessoas distintas. — Vocês são iguais, são homens, trabalham, têm uma família, onde está a diferença? Vocês são frutos de Deus, acham que ele quereria ver seus filhos a lutar por motivos descabidos como estes? Sinceramente, eu me menti calada por todo este tempo, mas agora, vocês é que têm que entender-se. Nós precisamos de paz, bondade, amizade, solidariedade, não de guerras, conflitos, inimigos. Sejam racionais, sejam pessoas e não animais, ou acabarão mortos como eles. Nós somos irmãos Em Busca Da Paz, vamos terminar com esta busca, porque já conseguimos o que queríamos, alcançamos finalmente a Paz.
— Gritou ela e todos aplaudiram gritando em coro “Paz”.
Este foi o dia da vitória, foi o dia em que Vera Luz voltou a ser a Terra Mágica, em que as pessoas voltaram a trabalhar em conjunto. Era finalmente a verdadeira Vera Luz. As plantas voltaram, as árvores que pareciam diamantes brilhavam novamente, os animais voltaram à Terra, tudo estava pacífico, perfeito.
As amizades voltaram, ninguém odiava ninguém. Essa é a vantagem da paz, uma das muitas, ela pode salvar um mundo em ruínas, nada pode substituir um mundo pacífico. Finalmente novas caras apareceram naquela terra, e a felicidade era o único sentimento no coração de todos.
Ah, Layna e Andrew? Eles tiveram o seu final feliz para sempre, e bem mereciam, foram eles os salvadores de Vera Luz. Essa foi a história de um mundo perdido na superioridade e na ganância, a voltar para a Paz e para o Amor que sempre esteve escondido no coração de todos. Só precisavam de um empurrãozinho.
A CURTIÇÃO É O PORTÃO DA DESTRUIÇÃO
TEXTO: QUÉRCIA ISAC TEMBE
ILUSTRAÇÕES: ELISIO NGOENHA
Já não vejo o amanhecer de cada dia,
noites perdidas, vidas destruídas
– eis-me em pleno inferno, onde
todas as escadas pró céu estão derruídas.
Perdi o rasto a quem sou,
nem mesmo sei para onde vou,
tomava por riqueza a miséria
do engano que me frustrou.
Linda, sorridente e atraente
mas por dentro estou um caco
e a minha decepção é ‘inda pensar
que na curtição sou o melhor naco.
A curtição é o portão da destruição
O meu corpo enfeixado na perdição
e a minha mente na escuridão
atiram-me para um mundo inadequado
onde tudo se paga, mesmo a ilusão.
Paga-se para os dentes amarelar
Paga-se para o fígado danificar
Paga-se para com de tudo nada ficar
E até pró amor faltar a justificação,
No escuro aguilhoa-me a decepção.
Quem sou eu? Alguém que um dia sonhou?
Perdi a minha identidade nesse mundo traidor
Cheio de quimeras para quem não tem a visão.
Cá estou, que fiz eu da minha vida?
Que farei agora para me livrar
deste mundo ao inverso? Que farei eu
para me livrar deste universo perverso?
A curtição e o portão da destruição
Estou uma sucata ou pior uma carcaça
falsa e fugidia está a minha imatura mocidade.
como recuperar a dignidade perante a sociedade?
Pudesse eu voltar atrás! Mas será?
Conseguirei reunir cada pedaço disperso de minha vida?
Eu sou uma criança que cortou suas próprias asas.
Pois! Fugo da Sida? A minha vida está um transtorno
Eu quero, eu devo e eu vou tentar de novo. .
O DRAMA DA AMÉLIA
TEXTO: SHUAIB ALGEMA ABDALA
ILUSTRAÇÕES: GERSON SILVA
Numa aldeia recôndita e distante da capital, havia uma miúda alegre e muito inteligente, que gostava de estudar e de compartilhar o seu conhecimento.
Chamava-se Amélia, esta miúda cheia de sonhos e objectivos por alcançar no futuro. Mas a vida também é cheia de dissabores e todos esses planos foram por água baixo quando aos nove anos de idade ela perdeu o seu pai, com quem vivia.
Passou então a viver com a sua mãe, que tinha mais carências materiais. Enfrentou assim várias dificuldades e sofreu alguns abusos físicos pelo facto de ser uma miúda indefesa e ser a mais velha de vários irmãos, sem que ninguém lhes desse a mão – agruras que os seus familiares distantes nem imaginavam. Cinco anos depois, a sua mãe foi assaltada por uma doença muito grave e acabou perdendo a vida. O que mais a deixou isolada. Os abusos continuaram por parte de indivíduos vizinhos que se aproveitavam da situação da miúda e pelo facto da vida dela ser um livro fechado, e das necessidades não perdoarem também. Deste modo todas as esperanças que lhe restavam de uma vida melhor se foram perdendo, a vida apresentava-se-lhe sem mercê com todas aquelas bocas à sua responsabilidade. Teve de parar de ir à escola, aflita com as novas obrigações como dona de casa.
Pouco tempo depois a Amélia conheceu a Cristina, que vivia na mesma aldeia e era conhecida como pessoa de fama e conduta péssimas.
Cristina tivera uma história quase idêntica à de Amélia, e envolvera-se no mundo da prostituição, ao que acrescentava alguns negócios ilícitos, o consumo e a venda de drogas. Amélia por conta das dificuldades que enfrentava, viu a necessidade de desabafar com alguém sobre as dificuldades que ela e os irmãos passavam, e acabou confidenciando-se com a amiga Cristina, que havia conhecido numa banca de tomate da aldeia.
Chovia nesse dia e a Amélia não podia regressar a casa, resguardada sob a chapa da venda, e vendo-lhe o ar de insatisfação e de necessidade a Cristina procurou saber o que a trazia tão amargurada. Amélia sentiu-se um pouco de alívio por ter encontrado alguém que notara a sua infelicidade, e disse-lhe: Sabe amiga, eu já perdi todas as esperanças de uma vida melhor, tenho passado por várias dificuldades, não consigo ter emprego e além do mais estou cansada de ver os meus irmãos a sofrer. Então a Cristina replicou: Sei o que é passar por dificuldades, e para mim é muito triste saber que uma amiga minha está a passar por isso… eu acabei superando isso, mas foi difícil, e acabei por arranjar uma ocupação…
que me dá um salário garantido… – e, olhando Amélia nos olhos, continuou, acho que tu podes também trabalhar no mesmo, és uma mulherzinha, ficas independente e com dinheiro para sustentar os seus irmãos – que me dizes?
Redargiu a Amélia: Não tem nenhum problema, desde eu consiga sustentar os meus irmãos e ultrapassar as minhas dificuldades.
Então a Cristina propôs-lhe uma parceria e que podiam começar nesse mesmo dia. Tens a cereza, perguntou Amélia, ansiosa. Tenho, atalhou a outra, Amélia foi pôr os legumes em casa, preparou uma sopa para os irmãos, e voltou duas horas depois.
Cristina esperava por ela, e levou-a para o posto de trabalho, dois quilómetros depois da povoação, numa curva da estrada.
Amélia não acostumada com o ambiente que foi encontrar e pensou em voltar a casa e em desistir, mas havia outras raparigas na estrada um pouco mais velhas do que ela e que a foram sossegando e falando-lhes das vantagens de tal vida, e etc. E ela, ao terceiro homem que a convidou para entrar para dentro do carro, ao fim de muitas hesitações lá entrou.
Chorou quando o homem lhe tocou, mas quando este percebeu que ela era virgem pagou-lhe mais e Amélia ficou dividida. Levou depois quase uma semana a voltar àquele lugar, mas as necessidades obrigaram-na. E assim começaram anos dessa vida. Que piorou quando o António se envolveu na sua vida e a meteu na droga. O António era um adolescente fanfarrão, muito ignorante e só com interesses materiais, que andava sempre envolvido em esquemas de venda de drogas e assaltos. E assim a Amélia conheceu o mundo das drogas, desfeita a imagem de uma miúda ingénua inteligente com sonhos para o futuro.
Amélia perdeu toda a noção do que fossem valores, embora a começasse a assustar os riscos tolos em que o António a metia e se sentisse cada vez mais arrependida.
Amélia já estava cansada daquela vida e além do mais viu que a Cristina definhava, por conta de algumas doenças que acabou contraindo na vida de prostituição.
Quando António foi baleado e preso no assalto a uma farmácia, Amélia viu o momento para mudar de comportamento e de vida.
O que muito alegrou também os irmãos, cansados de serem vistos como os familiares de uma prostituta. Amélia abandonou a vida da prostituição e as drogas, voltou a estudar, e, começaram a receber ajuda dos parentes que estava distantes, recuperando aí um laço de união também para dentro de casa, pois passaram a entreajudar-se mais uns aos outros. Com esforço e dedicação, a Amélia concluiu o ensino básico, continuou os estudos e formou-se.
Amélia virou uma doutora e tornou-se a prova viva de que tudo e possível. E sensível ao problema que atravessara acabou desenvolvendo um movimento de ajuda social, e escreveu um livro, contando a sua vida e a sua história de superação, como exemplo de superação – assim se converteu numa mulher digna, e um sinal de motivação para muitos, mostrando que não há impossíveis quando a decência acompanha o desejo e a determinação para uma vida melhor.
Vencedores
Prémio Literário de Contos Njinguiritane – Categoria Crianças
Prémio Literário de Contos Njinguiritane – Categoria Adultos
Prémio de Ilustrações Njinguiritane – Categoria Adultos
Prémio de Ilustrações Njinguiritane – Categoria Crianças
Sobre o prémio
O Prémio de Ilustrações Njinguiritane tem como objectivo promover a expressão artística e estimular a leitura e interpretação de textos através da ilustração.
Os trabalhos de ilustração a desenvolver serão destinados a um público Infantojuvenil e devem retratar os temas abordados nos textos premiados no âmbito do Prémio Literário Njinguiritane que foram elaborados por Crianças e adolescentes moçambicanos dos 10 aos 17 anos e por adultos moçambicanos singulares. Os textos premiados abordaram algum, ou vários, dos seguintes temas: Paz, Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, Género, Necessidades Educativas Especiais, Direitos da Criança, Educação Cívica.
Nesta fase, o concurso está aberto em duas categorias:
- Categoria 1: Crianças moçambicanas dos 10 aos 17 anos.
- Categoria 2: Adultos moçambicanos singulares
Regulamento
O Njinguiritane – Prémio de Ilustrações de contos infantis insere-se no âmbito do Projecto Raízes e Cultura – Empreendedorismo cultural e reforço da identidade e cultura moçambicana, implementado pela FEC | Fundação Fé e Cooperação e Khandlelo – Associação para o Desenvolvimento Juvenil (ONGD). Este Projecto é financiado pela União Europeia [CSO-LA/2018/397-491] e Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P.
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Financiadores e Parceiros
Financiadores
Parceiros
FUNDAÇÃO FÉ E COOPERAÇÃO
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AEMO
ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES MOÇAMBICANOS
AEGUI
ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES DA GUINÉ-BISSAU
MOZARTE
IPEME
INSTITUTO PARA A PROMOÇÃO DAS PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS
UCP – PORTO
ÁREA TRANSVERSAL DE ECONOMIA SOCIAL