ENTREVISTA COERENTE COM FERNANDA FARIA

Fernanda Faria | Investigadora e Consultora Independente Programme Associate do European Centre for Development Policy Management (ECDPM)

 

A Interligação entre Segurança e Desenvolvimento

 

1 – No quadro da sua estratégia global para as crises e conflitos externos, a UE defende uma maior interligação entre segurança e desenvolvimento. Quais têm sido as principais evoluções na implementação desta interligação nos últimos anos?

Antes de mais, houve um desenvolvimento importante ao nível das políticas e orientações para a interligação entre segurança e desenvolvimento na ação externa da UE em contextos de fragilidade e tanto na gestão como na prevenção de crises e conflitos. Essa interligação inclui igualmente o reconhecimento da necessidade de fazer a ponte com a ajuda humanitária, políticas comerciais, ambientais e outras ligadas a questões de segurança interna (nomeadamente a gestão de fronteiras e migrações, cibersegurança, luta contra tráfegos ilícitos). Há no seio da UE um reconhecimento generalizado da necessidade de um trabalho conjunto nesse sentido que inclua os diferentes serviços da Comissão Europeia e os Estados-Membros, para além de maior coordenação com parceiros como as Nações Unidas, a União Africana e outras organizações regionais, e outros parceiros no terreno.
Isso é patente na “Estratégia Global para a política externa e de segurança da União Europeia”, bem como em documentos anteriores, nomeadamente relativos à “Abordagem Global em situações de crise e conflito” como nas políticas regionais, temáticas e sectoriais pertinentes para a resposta da UE nestes contextos. A Estratégia Global não traz, por isso, alterações significativas ao quadro normativo de políticas já existentes, mas procura cimentar a implementação das mesmas, reiterando modalidades e mecanismos de trabalho conjunto para uma abordagem mais coerente, coordenada e tanto quanto possível integrada da ação externa europeia. Estes esforços enquadram-se também numa lógica de maior eficácia e eficiência no uso de recursos financeiros e humanos.
Na prática, em que é isto se tem traduzido? Essencialmente em duas linhas principais de orientação que não sendo novas, ao contrário do passado, gozam de um apoio político e institucional declarado e ao mais alto nível.
Por um lado, na consolidação de esforços com vista ao consenso político para uma ação mais coerente, rápida e coordenada através de práticas e mecanismos formais e informais de trabalho conjunto. São, por exemplo, prática corrente: a preparação conjunta de comunicações sobre políticas, planos de ação e orientações estratégicas e operacionais por parte da Comissão Europeia e da Alta Representante sobre matérias de política externa comum; a realização de missões conjuntas a países terceiros; a programação conjunta com os Estados-Membros; a utilização de forma mais sistemática de instrumentos de análise e alerta precoce (análises de risco, análises de contexto e de conflito) realizadas e partilhadas também com os Estados-Membros e outros parceiros; melhorias no intercâmbio e gestão da informação no seio da UE, incluindo a racionalização e interligação de estruturas no âmbito da ajuda humanitária e proteção civil e de gestão de crises das instituições europeias e Estados-Membros (no âmbito da resposta a emergências internas como externas). Estas e outras medidas visam promover um entendimento e visão estratégica partilhadas que permitam facilitar o consenso político e, consequentemente, a tomada de decisão.
Por outro lado, a UE tem vindo a adotar ao longo dos últimos anos várias medidas com vista à flexibilização e simplificação dos processos e instrumentos de apoio à ação, desde a tomada de decisão, à planificação e ao financiamento com vista a uma resposta atempada e eficaz a situações complexas ou de crise. Esta continua a ser uma linha de orientação fundamental que irá certamente dominar as negociações do próximo Quadro Financeiro Multianual 2021-2027. No atual Quadro Financeiro (2014-2020), a CE estabeleceu uma regulamentação comum à maior parte destes instrumentos, que trouxe mais flexibilidade a certos instrumentos ao transpor para a regulamentação comum algumas das características de instrumentos flexíveis como o Instrumento para a Estabilidade e a Paz. Esta simplificação e harmonização não parece ter tido, contudo, um impacto significativo no que respeita ao âmbito e rapidez da ação externa, mas poderá ter aberto a porta a possíveis medidas mais ‘radicais’, como uma eventual junção de instrumentos. Outras medidas incluem: o aumento dos montantes de reserva, de forma a permitir responder a urgências ou necessidades imprevistas; maior utilização de procedimentos rápidos e flexíveis existentes para situações de crise como no Mecanismo em favor dos Refugiados sírios na Turquia; ou ainda a criação de fundos fiduciários com contributos comunitários, dos Estados-Membros e abertos a outros doadores e financiadores privados.

2. Quais as principais dificuldades ao nível europeu para uma abordagem mais integrada? São dificuldades políticas, institucionais, operacionais, ou um conjunto de todas estas?

As dificuldades são múltiplas e verificam-se a todos esses níveis. Uma questão de base, apesar do progresso realizado, é que não há uma aplicação sistemática de muitas das medidas adotadas. Por exemplo, as análises de conflito não são sistematicamente realizadas, ou por vezes acontecem depois da programação feita, ou simplesmente não são revistas e atualizadas regularmente, ou ainda, dependendo dos contextos, não são necessariamente feitas em conjunto ou partilhadas com os Estados-Membros.
Outra dificuldade fundamental reside na transposição das análises em estratégias e programação conjuntas adequadas. Uma análise partilhada não significa necessariamente acordo sobre as prioridades e estratégia a adotar. Para além das dificuldades inerentes aos contextos de fragilidade e conflito – incluindo a sua volatilidade e o predomínio de sistemas informais difíceis de apreender nas suas múltiplas nuances – as opções que se colocam a cada ator são condicionadas pelas capacidades existentes e, no caso dos Estados-Membros em particular, também por perspetivas e interesses nacionais. E quando existe acordo sobre a estratégia, os detalhes de “como”, “quando”, “com que meios”, “com quem”, “por quem”, etc., são muitas vezes um processo tanto ou mais difícil ainda.
Nesta cadeia de processos de tomada de decisão – da análise, à definição da estratégica a seguir e à sua efetiva implementação – a vontade, liderança e visão políticas no seio da UE são determinantes para uma abordagem integrada e uma estratégia coesa entre a multiplicidade de atores e instrumentos que a UE mobiliza, bem como para ultrapassar eventuais obstáculos de natureza processual, financeira ou outros. O Mecanismo em favor dos Refugiados sírios na Turquia é um caso ilustrativo. Conseguir e manter esta confluência de vontade, liderança e visão políticas a 27 e entre os diferentes serviços institucionais da UE, cada um com o seu mandato e prioridades, continua a ser um enorme desafio.
Há que reconhecer que a cultura institucional de trabalho conjunto e da necessidade de uma abordagem mais integrada é hoje amplamente apoiada nos vários quadrantes institucionais e está de algum modo mais enraizada do que no início da década. Mas tal não significa que seja mais fácil realizá-la no presente contexto… A UE continua a oscilar entre tendências contraditórias de aprofundamento da união política e renacionalização. Além disso, ao nível interno dos Estados-Membros a abordagem global ou integrada não faz sequer parte do léxico de muitos Governos, muito menos da prática.

3 – Pode referir algum exemplo em que a atuação europeia tenha sido particularmente positiva na criação de condições para uma paz positiva e sustentada? E outro em que seja evidente a descoordenação da ação e dos intervenientes?

Antes de mais, há que relativizar a importância do papel de atores externos na criação de condições para uma estabilidade e paz duradouras. Isto não significa que não tenham qualquer influência ou um papel a desempenhar, mas há que ser modestos e sobretudo realistas. Por mais importante que seja a presença e influência de atores externos, dificilmente esta poderá suster um esforço continuado e de longo prazo na ausência de interesse e mobilização de atores locais e sem apropriação por parte da sociedade em questão.
Em segundo lugar, a UE raramente é o único ator externo nestes contextos, mesmo onde a presença internacional é reduzida, se bem seja com frequência a presença mais estável e contínua de entre os atores internacionais presentes. A Somália, o Afeganistão, o Iraque, o Sudão do Sul, os territórios palestinianos são apenas alguns exemplos de contextos onde a UE e outros atores da comunidade internacional investem desde há muito na pacificação e (re)construção do Estado. Não obstante, continuam em situação de grande fragilidade e conflito. Sem essa presença e apoio internacional, a situação nestes e outros contextos seria hoje ainda mais dramática sob muitos aspetos, nomeadamente humanitário – ou talvez não, como no Iraque e na Líbia onde a intervenção externa contribuiu para a escalada de conflitos internos e a instabilidade regional…
As dificuldades de alguns destes contextos em particular têm sido, para a comunidade internacional em geral, fonte de aprendizagem para experimentar abordagens diferentes, e argumento fundamental para uma abordagem mais integrada. Na Somália, por exemplo, a UE mobilizou a diversidades dos seus instrumentos políticos e financeiros, incluindo três missões PESD, representantes diplomáticos especiais (regional e para a Somália), apoio à AMISOM através do Mecanismo de Apoio à Paz em África e instrumentos de ajuda humanitária, setorial e temática. A presença de grande número de atores e o amplo leque de intervenções da UE e Estados-Membros, para além das de outros atores regionais e internacionais, tornou patente a falta de coordenação e de articulação das diferentes intervenções, evidenciando tensões entre atores e políticas europeias e criando ainda mais dificuldades para o frágil governo da Somália. Apesar dos esforços e melhorias, a Somália continua a ser um desafio para uma abordagem integrada da UE (como o é o Mali e outros contextos complexos). Tem sido sistematicamente um dos países piloto em estudos e experimentação de novas abordagens, nomeadamente no plano de ação da abordagem global e agora na interligação ajuda humanitária-desenvolvimento.
Apesar das dificuldades e falhas da ação externa, em diversas ocasiões a UE contribuiu para realizações e processos que tiveram um impacto positivo importante para a criação da paz e a prevenção ou escalada de conflitos. É o caso, por exemplo, do apoio da UE à mediação no Kosovo, Indonésia (Aceh), Filipinas (antes da chegada ao poder de Duterte), Quénia, Geórgia; à desminagem no âmbito dos acordos de paz entre as FARC e o Governo colombiano e como medida importante de criação de confiança num momento frágil dos diálogos de paz; no apoio a processos de diálogo ao nível local em contextos vulneráveis como nas zonas de fronteira entre o Sudão e o Sudão do Sul, na República Centro-africana, no Níger, em El Salvador, para referir apenas alguns exemplos.

4 – Em termos de instrumentos financeiros, a coerência está assegurada? Quais as principais lacunas e incongruências?

O leque de instrumentos de que a UE dispõe é amplo, permite cobrir diversas áreas de ação e tipos de intervenção, e salvaguarda o investimento europeu em determinados sectores ou prioridades de acordo com os objetivos do Tratado. Porém, esta arquitetura financeira também leva a uma compartimentalização do financiamento da ação externa, tornando a sua gestão mais pesada e a articulação entre intervenções financiadas por diferentes instrumentos mais complexa, já que cada instrumento tem as suas regras e âmbitos de intervenção. Por outro lado, gerir um instrumento confere também poder e influência aos serviços responsáveis…
Há um evidente desfasamento entre, por um lado, o enfoque da Estratégia Global e da Abordagem Integrada em situações de crise e conflito e, por outro lado, a arquitetura dos instrumentos financeiros para a ação externa que foi pensada sobretudo no âmbito de políticas a mais longo prazo de desenvolvimento e democratização. A maioria dos instrumentos são programáveis; não são por isso destinados a uma resposta rápida e flexível por parte da UE – se bem que nos últimos anos a CE introduziu procedimentos flexíveis para situações de crise e regras de revisão da programação que permitem maior adaptabilidade a mudanças de contexto. Outros instrumentos como o de ajuda humanitária e o Instrumento para a Paz e a Estabilidade permitem maior flexibilidade. No entanto, estes representam uma pequena fração dos fundos para a ação externa; os procedimentos flexíveis para situações de crise não são utilizados com frequência, quer por falta de conhecimento, aversão ao risco e/ou por falta de incentivos ou um apoio político claro por parte da hierarquia institucional. As regras, agora revistas, do que é suscetível de ser classificado como ajuda pública ao desenvolvimento também são um fator condicionante.
Os fundos fiduciários da UE (trust funds) nascem em grande medida da necessidade de contornar estes obstáculos e acelerar o processo de tomada de decisão e implementação da ajuda e ação externa (bem como da vontade de maior controlo sobre contributos europeus a fundos internacionais – mas essa é outra questão). O Mecanismo em favor dos Refugiados sírios na Turquia, que generaliza a aplicação de procedimentos flexíveis aos instrumentos que contribuem para a Facilidade, é um bom exemplo do que é possível fazer dentro das regras atuais, quando há vontade política e uma orientação estratégica partilhada entre os atores políticos e serviços institucionais competentes. Em qualquer dos casos estas soluções continuam a ser uma resposta ad-hoc e parcial às necessidades de interligação entre segurança e desenvolvimento.
No âmbito do próximo Quadro Financeiro Multianual estão em discussão propostas mais “radicais” como a da fusão de diferentes instrumentos financeiros para a ação externa. Esta proposta poderá permitir muito maior simplificação a todos os níveis e facilitar significativamente a interligação entre políticas e ações, mas suscita também muitas questões quanto à salvaguarda de fundos para áreas geográficas e temáticas, e receios legítimos de securitização das políticas de desenvolvimento. Seria, contudo, pertinente considerar uma tal opção, procurando ao mesmo tempo salvaguardar o investimento da política externa em políticas estruturantes e de longo prazo, de acordo com os princípios e valores definidos no Tratado da UE.

5 – A sociedade civil tem apontado uma crescente securitização do desenvolvimento no relacionamento da UE com os países terceiros (nomeadamente através da questão das migrações). Nesse contexto, quais as principais perspetivas para o futuro da ação externa europeia?

As preocupações de segurança na Europa face aos ataques terroristas em território europeu e a crescente tensão e aumento dos conflitos no plano internacional estão, de facto, a resultar numa atenção e investimento crescentes na cooperação em matéria de segurança e defesa não só no seio da UE, já patente nos planos de Cooperação Estruturada Permanente nestas áreas e na criação do Fundo Europeu para a Defesa, mas também na cooperação com países terceiros. É uma tendência que irá muito provavelmente continuar, dado o contexto interno e internacional.
A interligação entre interesses e prioridades internas e política externa é, além disso, um dado desde há anos na cooperação internacional e em programas de reforço de capacidades de países terceiros, nomeadamente na luta contra o terrorismo, pirataria, migração clandestina e tráficos ilícitos. A questão migratória adquiriu, porém, uma dimensão prioritária tal na relação com países terceiros, que acaba por colidir com princípios e valores fundamentais da política externa da UE e, em algumas situações, coloca a UE numa situação de vulnerabilidade política e negocial. Nesse sentido, a interligação entre segurança e desenvolvimento poderá acarretar riscos de grave incoerência quando guiada por análises não objetivas ou interpretações parciais.