ENTREVISTA COERENTE COM VICTOR ÂNGELO

Victor Ângelo | Conselheiro Internacional Sénior do Geneva Centre for Security Policy (GCSP) | Membro do Conselho de Administração da Fundação PeaceNexus (Suíça) | Antigo Representante Especial do Secretário-Geral da ONU (Operações de Paz)

 

  1. O conceito de “segurança humana” está hoje desprovido de significado, face às características dos conflitos e das intervenções internacionais?

As funções que exerci na década de 1990, numa época de viragem na maneira de conceptualizar e praticar as políticas de desenvolvimento, fizeram com que eu fosse um dos promotores mais aguerridos do conceito que então surgiu, o da segurança humana.

O fim da Guerra Fria acabara por pôr em causa a prioridade e o papel dado até então às forças militares e às questões de defesa nacional. A isso juntou-se o aparecimento de um conjunto de situações de conflito violento no interior das fronteiras nacionais de certos Estados. As populações viram-se, de um dia para o outro, encurraladas entre o poder estabelecido e atores não-convencionais, mais ou menos bem armados. Surgiu um novo tipo de violência coletiva, muito próxima do quotidiano das populações, e, por isso, altamente perturbadora dos modos de vida e da própria sobrevivência das pessoas. Tivemos, nessa altura, as tragédias dos Balcãs e dos Grandes lagos da África Central, para mencionar apenas as crises que mais nos obrigaram a questionar a maneira de encarar a segurança das populações e as políticas de desenvolvimento.

Mas não foram apenas as mudanças geopolíticas e os conflitos internos que nos levaram ao reconhecimento da dimensão humana da segurança. A década em causa, a dos anos 90, foi o período em que se formularam as primeiras estratégias integradas de combate à pobreza. O debate à volta dessas estratégias fez-nos compreender que o indivíduo, as famílias, as pessoas nas suas lutas diárias são na realidade quem conta em matéria de desenvolvimento. Houve então uma mudança do paradigma. A ênfase nos direitos humanos, na igualdade do género, nas liberdades fundamentais ganhou uma importância fundamental. Já não era apenas um questão de crescimento económico, de emprego, ou mesmo de boa governação. Era tudo isso, mais o espaço político que permitisse respeitar os direitos de cada cidadão e deixá-lo tomar conta da sua vida e da vida dos seus. E participar nas esferas da política e da sociedade, em liberdade e sem coação.

Continuo, depois de mais de duas décadas de grandes alterações na cena internacional, a sublinhar que a atenção prioritária deve focalizar-se na procura de um equilíbrio entre três dimensões essenciais: a segurança das pessoas, o respeito pelos seus direitos básicos e o alargamento das oportunidades que permitam reduzir e eliminar a pobreza. Temos assim o tripé do desenvolvimento. O progresso social só pode ser construído nessa base.

Esta triangulação deve ser, igualmente, o ponto de partida para a resolução de muitos dos conflitos hoje existentes. Assim deve acontecer no Sudão do Sul, no Mali, na Síria, no Afeganistão, e noutros países onde existem conflitos nacionais profundos e marcadamente desestabilizadores.

Lembra-nos ainda que a segurança interna, os direitos humanos e a oportunidade para se construir uma vida decente são os alicerces da paz. Ao nível nacional, mas também na cena regional e na arena internacional. E quando sublinhamos esses alicerces, estamos na realidade a referir-nos ao conteúdo, às questões centrais que definem o que se deve entender por segurança humana.

  1. Quais as possibilidades e medidas necessárias para melhorar a resposta da ONU aos conflitos violentos no mundo e o seu papel na construção da paz sustentável? Uma reforma da instituição é suficiente?

Uma das grandes ameaças à paz e à segurança internacionais tem que ver com a marginalização da ONU, sobretudo quando feita de um modo deliberado, como tem acontecido nos casos da Ucrânia, da Síria e do Afeganistão. O processo de marginalização tem-se acentuado nos últimos quatro ou cinco anos, sobretudo no que respeita à gestão dos conflitos de interesse estratégico excecional para um ou outro membro permanente do Conselho de Segurança.

O reforço do papel das Nações Unidas passa pela denúncia dessa posição política que procura enfraquecer e excluir. Quanto mais calados ficarmos, perante o surgimento de iniciativas paralelas e de substituição do papel que cabe às Nações Unidas, mais enfraquecida ficará a organização. A própria ONU não pode aceitar ficar silenciosa perante qualquer tentativa que procure ignorar a sua legitimidade, autoridade, missão, imparcialidade e competências. Cabe ao Secretário-Geral, no quadro das atribuições que a Carta lhe confere, ser a voz dos que veem os seus direitos ser negados e chamar a atenção do Conselho de Segurança para as situações que ponham em perigo a paz e a segurança internacionais. Assim o diz o Artigo 99 da Carta das Nações Unidas.

Uma interpretação atual do Artigo 99 abrange toda e qualquer violação sistemática dos direitos humanos bem como crises que possam ser classificadas como catástrofes humanitárias ou crimes contra a humanidade. Esta maneira de ver a responsabilidade do Secretário-Geral – e de procurar reforçar a sua função – traz-nos de imediato para a área da segurança humana.

Por outro lado, sabemos que há décadas que se fala da reforma da ONU. E passaremos, de novo, muitos anos no futuro a debater esta questão. Mas para além de mudanças ao nível dos organigramas, que são sempre possíveis, e pondo de parte a reforma improvável do Conselho de Segurança, são as questões de princípio, relacionadas com o reforço da autoridade moral, a independência política e o papel do Secretário-Geral que me parecem primordiais. Em seguida, é fundamental investir numa maior capacitação das estruturas de apoio ao Secretário-Geral e ao seu relacionamento com o Conselho de Segurança, nas áreas de mediação, bons ofícios, prevenção de conflitos e preservação da paz.

É igualmente importante conseguir uma maior sinergia entre os pilares políticos, de direitos humanos e de luta contra a pobreza da ONU. Estes três domínios devem estar tão integrados e ser tão complementares quanto possível. Aí reside o nexo da paz e do desenvolvimento.

Este é um tipo de reforma que já começou ao nível da presença das Nações Unidas nalguns Estados membros, ou seja, na maneira de trabalhar das equipas das Nações Unidas por país. Precisa, no entanto, de ser aprofundada ao nível da sede, de modo a que a direção estratégica vinda do centro para as equipas que estão no terreno seja coerente, quer em termos de planos de ação, quer ainda no que respeita aos objetivos que se pretendam alcançar. A coordenação estratégica deve preceder a operacional e não o contrário. Mais concretamente ainda, a procura de sinergias deve ser a tarefa principal da Vice-Secretária-Geral da ONU, por delegação expressa e com o apoio declarado do Secretário-Geral.

  1. Na sua opinião, a União Europeia tem sido coerente na interligação entre segurança e desenvolvimento na sua ação externa? Neste quadro, pode dar exemplos das principais dificuldades ao nível europeu?

A União Europeia tem investido na capacitação das forças e serviços nacionais de segurança de países com quem mantém igualmente uma relação de cooperação no sentido de ajuda ao desenvolvimento. Neste momento, a UE tem seis operações militares e dez missões civis no terreno, nas áreas da paz, segurança, apoio à gestão de conflitos, reforço do Estado de direito, reforma do sector da segurança e do combate aos tráficos de pessoas. Cada missão tem a sua história, as suas dificuldades e os seus sucessos. É difícil fazer uma apreciação que abarque todas dimensões. Pode, no entanto, reconhecer-se que os Estados membros da UE fazem, de um modo geral, uma avaliação positiva dessas missões. Não têm mostrado reservas significativas quando se trata de renovar os mandatos ou aprovar novas operações. A única preocupação discernível tem sido a manter o âmbito e as dimensões das missões europeias tão limitados quanto possível. Essa moderação tem que ver com a variável custos, mas também com uma preocupação de ordem política. Certos Estados da UE parecem ter dúvidas sobre qual deve ser o grau de engajamento da União em matérias de manutenção e de construção da paz em países que não são vizinhos do espaço geopolítico europeu.

É relevante dizer, no entanto, que se tem notado nos últimos dois anos um tendência para tratar problemas multidimensionais com respostas marcadamente securitárias. Responde-se, assim, a crises complexas com instrumentos unidimensionais. Esta opção é clara no que diz respeito à maneira de encarar a crise profunda em que vivem a maioria dos países do Sahel. Certos líderes europeus, e os Franceses em particular, tem insistido na criação de uma força militar que agrupe contribuições de cinco Estados do Sahel – Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Essa força, conhecida como o G5 Sahel, mobilizaria cerca de mil militares de cada um dos países acima referidos. Teria como missão patrulhar as fronteiras e combater a insegurança, os grupos terroristas, os traficantes de toda a ordem e outros bandidos armados que operam nessa vasta região da África Ocidental.

Esta maneira de abordar a problemática do Sahel levanta muitas perplexidades. Para começar, a sustentabilidade financeira de uma força militar desse tipo não está garantida. Patrulhar uma região tão vasta e tremendamente inóspita com cinco mil militares tem um custo de arranque inicial e custos recorrentes anuais que estão fora das possibilidades dos países em causa.

É verdade que a UE se comprometeu a disponibilizar 100 milhões de euros, numa primeira fase. O montante sairá do Instrumento para a Paz e a Segurança, que tem como objetivo reforçar a capacidade dos atores de segurança e militares em países parceiros da UE. Outros doadores irão contribuir para o arranque da força.

Mas tudo isso não assegura o futuro, a sustentabilidade da iniciativa. Diria mesmo que se está a despender uma soma considerável sem ter havido um debate a sério, dentro da União Europeia, sobre várias interrogações que uma intervenção tão delicada como esta levanta obrigatoriamente. Algumas dessas interrogações têm que ver com a atribuição de funções de policiamento a militares, com a falta de definição de quais são os inimigos a combater e dos resultados a obter, sem contar com o facto, reconhecido por quem sabe, da muita fraca capacidade de análise de informações e operacional dessas unidades militares. E, acima de tudo, a UE aparece ligada e a apadrinhar financeiramente – e também, politicamente – um conjunto de forças militares que não têm um historial de respeito pelos direitos humanos das populações dos seus próprios países. Antes pelo contrário, trata-se de militares que são vistos pelas respetivas populações como brutais e alheios ao respeito pelas normas próprias de sociedades democráticas.

A falta de discussão aprofundada das dimensões políticas das missões da UE, incluindo uma definição clara da contribuição militar e securitária para o processo político que deveria ter lugar no país de acolhimento das missões, reflete a ausência de uma visão compreensiva e integrada. Essa ausência também acontece quando se trata da componente ajuda ao desenvolvimento. Não há, na maioria dos casos, um alinhamento coerente entre os objetivos políticos, securitários e de desenvolvimento. Quando isso é tentado resulta geralmente da boa vontade dos líderes europeus dessas três componentes que se encontram em funções nos países em causa. Ou seja, há, nalguns bons exemplos, uma prática que se apoia nas iniciativas e na boa colaboração entre os responsáveis no terreno das diferentes vertentes da presença da UE, mas que não tem correspondência ao nível de Bruxelas.

  1. No relacionamento UE-África, parece que as questões da segurança e migrações tomaram definitivamente conta da agenda. A ajuda ao desenvolvimento está a ser instrumentalizada para esses propósitos? Acha que a “securitização” do desenvolvimento é real?

Invariavelmente, as questões das migrações e da segurança são hoje o prisma a partir do qual se decide, nos círculos de liderança da UE, o que fazer em África e noutras regiões vizinhas do espaço europeu. Quer se queira quer não, há que reconhecer que, neste momento, os outros programas de cooperação aparecem como subordinados a essas duas grandes preocupações.

As migrações em larga escala e de modo descontrolado levantam imensos problemas políticos aos dirigentes europeus. Há razões válidas para que assim seja. Os movimentos migratórios tal como estão a acontecer podem levar a fraturas profundas entre os Estados membros e, por outro lado, ao nível de alguns países da União, dar azo a que os partidos de extrema-direita e xenófobos consigam criar o caos político e chegar a situações de poder. Uma boa parte dos radicalismos e das correntes populistas tem como fonte de vida a chegada em massa, nos últimos anos, de candidatos à imigração provenientes de espaços humanos exteriores ao continente europeu. Assim, tudo isto pode ter um impacto negativo muito elevado no que respeita à unidade do projeto europeu. A falta de uma política de imigração aprovada por todos pode potencialmente levar à fratura da UE.