Entrevista Coerente a Manuel Correia

Manuel Correia | Professor no Instituto Superior de Agronomia

1 – Como podemos resolver a incoerência de base que é vivermos num mundo onde 1/3 dos alimentos são desperdiçados, mas mais de 800 milhões de pessoas se encontram numa situação de fome? É o modelo predominante que está errado logo à partida?

Não, não está errado. É preciso ter muito cuidado com as palavras para não propalar “meias verdades” a plenos pulmões. A verdade é que hoje temos sociedades ainda na era da pura coleta, outras numa fase de agricultura ainda muito rudimentar, e outras que aproveitaram o que a revolução industrial trouxe de bem e de mal e conseguiram evoluir para outros tipos de agricultura mais eficiente e inicialmente delapidadores do ambiente até chegarmos à agricultura de precisão onde, contrariamente ao que se propala, é uma agricultura eficiente, produtiva e não delapidadora do ambiente.
Ainda antes de responder especificamente à questão temos, principalmente nos países em desenvolvimento, uma falta de dados que nos permitam o diagnóstico de região a região e país a país. Dizer que 1/3 dos alimentos são desperdiçados é uma frase feita que eu próprio repito anualmente aos novos alunos. O Robert Chambers, no seu último livro, refuta várias frases feitas no desenvolvimento e essa é uma delas. Na realidade, de uma forma geral, o real problema dos 800 milhões (que se encontram nas regiões mais pobres) é a falta de acesso e não a falta de alimentos. Se bem que ninguém possa ficar satisfeito com tal desperdício, nada nos garante que se não o houvesse, essas pessoas não passariam fome. Na maior parte dos casos, na minha opinião, continuariam a passar.
É preciso também ter em conta que, globalmente, mais acesso não se resolve com mais produção e menos desperdício. O desperdício nos países desenvolvidos está mais ligado ao excesso de comida confecionada, devido a questões de “food safety”, e aqui sim, o (re)aproveitamento da comida tem sido uma das armas contra a minoração da fome nos países mais ricos enquanto que, nos menos desenvolvidos, se prendem essencialmente com questões do pós-colheita, quer por isolamento e/ou falta de tecnologia adequada. A juntar a isto, e segundo o último relatório da FAO para a segurança alimentar, as questões de conflito, cada vez mais importantes naqueles países, limitam não apenas a produção mas essencialmente o acesso, tendo um impacto cada vez mais marcante na subnutrição das populações atingidas.

2 – Fala-se muito no potencial da agricultura familiar, dos circuitos curtos agroalimentares e da agroecologia como abordagens que podem fornecer soluções mais sustentáveis e eficazes na promoção da segurança alimentar e nutricional no mundo. Mas as políticas públicas têm contribuído para potenciar essas abordagens?

Na realidade, a agricultura familiar representa 70% dos alimentos produzidos no mundo, 40% de todos os empregos no mundo e no caso africano ela produz praticamente 100% da alimentação, mas ela difere muito de região para região e até a sua própria definição não é consensual entre as diferentes tendências.
No caso da CPLP e dando substância ao mandato do Conselho para a Segurança Alimentar e Nutricional, a CPLP propôs as “Diretrizes para a Agricultura Familiar” onde a questão da agroecologia é referenciada muito a pedido da sociedade civil brasileira, que vê nela a solução para uma implementação de um programa de segurança alimentar e nutricional adequado. Na minha opinião, é um falso problema. Ninguém de bom senso pode defender a continuação da exploração dos recursos naturais como em muitos lugares aconteceu e principalmente depois da revolução industrial. A agricultura tradicional, camponesa ou por vezes confundida por familiar só chegou aos nossos dias, depois de realizada em mais de dez mil anos, porque ela respeitou a correta exploração dos recursos naturais como aconteceu com a agricultura itinerante. A demografia e os conflitos levou a que esses agricultores, sem qualquer apoio, se vissem obrigados a praticar uma agricultura que pouco respeitava a correta exploração dos recursos naturais pelo que, o que urge é que esses agricultores abandonados sejam novamente incluídos nas prioridades dos seus governos na satisfação concreta dos novos problemas que lhe são colocados por um sistema de extensão rural adequado e com um sistema de investigação vocacionado para a resolução dos reais problemas que se colocam nas diversas situações e que, muitas vezes, vão muito para além de práticas “amigas do ambiente”.
A agricultura familiar, que pode representar a produção de praticamente toda a alimentação, deve merecer a atenção que nunca lhe foi dada pelas diferentes políticas públicas essencialmente nos países em desenvolvimento onde os circuitos curtos agro alimentares são dominantes.

3 – O apoio dos doadores aos países mais pobres nesta área é adequado? Identifica-se uma tendência para melhorar ou para piorar nos últimos anos?

O apoio dado está longe de ser o adequado por variadas razões e talvez a principal seja o facto de, para um adequado desenvolvimento rural senso lato,  serem necessários projetos ou financiamento de longo prazo, o que nunca foi a prática dos doadores, além do discurso internacional estar sempre a mudar os nomes a problemas antigos. A partir dos anos 80, a aposta na agricultura levou a uma perda de fundos que nunca mais recuperaram, apesar de todas as tentativas, nomeadamente as delineadas pelo Kofi Annan.
É verdade que todos os que estão ligados às questões do desenvolvimento defendem que a aposta na agricultura e, nomeadamente, na agricultura familiar, será a forma mais adequada de se combater a pobreza extrema e a segurança alimentar das populações. Além do mais, e não menos importante, poderá ser o setor que maiores oportunidades de emprego, nomeadamente através da inovação e do digital, poderá criar à juventude em termos de emprego decente.
Apesar de tudo isto, os doadores continuam a considerar a agricultura como um setor vital, mas continuam a destinar verbas insuficientes, enquanto os países recetores continuam a dizer que a aposta na agricultura e na diversificação é importante para o seu próprio desenvolvimento, mas continuam a não fazer, pelas mais variadas razões, apostas verdadeiras nesta opção. Basta olhar para o orçamento que dedicam ao setor, nomeadamente os países africanos, que na Cimeira de Chefes de Estado em Maputo prometeram que os seus orçamentos passariam a contar com 10% dedicado ao setor. Em alguns dos países, não chega 1%. É certo que, nas reuniões internacionais sobre o desenvolvimento, continuamos a ouvir que tudo vai bem. Isso não é verdade e talvez a culpa seja mais dos recetores que dos próprios doadores. Na realidade somos todos culpados. Eu próprio incluído.

4 – No caso da cooperação portuguesa, a segurança alimentar e nutricional parece nunca ter sido um objetivo prioritário na cooperação com os países parceiros, por comparação a outros setores. O que pensa sobre isto?

Os números não deixam mentir: independentemente das palavras, parece claro que o desenvolvimento rural nunca foi prioridade da cooperação portuguesa. Isto independentemente de algumas iniciativas bilaterais que foram acontecendo, como por exemplo a “Estação Frutícola no Quebo” na Guiné-Bissau, o Plano de Apoio ao Plano de Desenvolvimento Rural e Agrícola (PAPDAR)” em Malange, Angola, e o PADRTL em Timor. Já na área de formação, pode dizer-se, que a cooperação no setor acabou por ser mais efetiva na formação de profissionais através de vários tipos de formação e graduação levados a efeito em Portugal ou nos países com quem Portugal tem uma cooperação bilateral.
Lembro-me bem de, no almoço de despedida com os funcionários do ex-Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), eu ter realçado no meu discurso que uma das mágoas que levava era o facto de os orçamentos das ações de cooperação para o desenvolvimento rural não terem aumentado de forma significativa e continuarem em níveis muito baixos. É verdade que as opções estratégicas da cooperação devem ser traçadas a duas mãos pelos parceiros envolvidos e, até onde a minha memória consegue ir, o desenvolvimento rural nunca foi uma área de eleição para os nossos parceiros e é muito provável que ainda hoje seja esse o panorama. Atualmente, tanto quanto sei, as intervenções neste setor prendem-se com os novos tipos de cooperação como a Cooperação Delegada, como as que acontece em Timor, na Guiné-Bissau e em Angola. Nesta situação, entramos como executores e não como planeadores para a definição das áreas estratégicas.

 5 – Como vê a evolução da capacidade e mais-valias da cooperação portuguesa nesta área?

Em termos da evolução da capacidade e mais-valias da cooperação portuguesa, parece patente que, quer na cooperação portuguesa quer nas universidades, há uma perda de competências que não nos augura nada de bom. A Cooperação Portuguesa apenas tenta ir atrás da Cooperação Delegada sem qualquer definição sobre o que quer fazer, a as Universidades ou Politécnicos, mesmo as que sempre tiveram alguma tradição no setor, deixaram de formar profissionais com competências para trabalhar no mundo rural tropical. O início de um novo Mestrado em Sistemas Agrários Tropicais: Produção, Sociedades e Políticas (MESAT), no Instituto Superior de Agronomia, parece ser uma pedrada no charco. Aguardemos para ver os frutos. O sistema de ciência em Portugal também está longe de entender as especificidades no setor, o que não ajuda a quem queira aí trabalhar.
Na minha humilde apreciação, para além dos poucos profissionais que trabalham no desenvolvimento (um milhar?), o povo português é pouco dado a estas questões, o que permite aos governos não se preocuparem com o setor atendendo aos poucos votos que ele dá. As verbas atribuídas à cooperação vão continuar baixas ou mesmo a decrescer, os mecanismos ligados à cooperação continuam sujeitos à ditadura cega do Ministério das Finanças e por isso, em vez de facilitarem a maximizarem os poucos recursos que existem, ainda dificultam.
De qualquer forma, os países preferenciais para a cooperação portuguesa apresentam, todos eles, uma realidade rural pobre e em fase de desenvolvimento muito incipiente, pelo que existem várias ações que destacaria como importantes:

  1. A nível multilateral, influenciar as políticas que promovam o desenvolvimento rural dentro das modas atuais – sustentabilidade, género, juventude e alterações climáticas e naturalmente as relacionadas com a coerência das políticas.
  2. A nível interno:
    1. Trabalhar aos mais variados níveis os programas de “Educação para o Desenvolvimento” na expectativa que as gerações vindouras sejam cada vez mais adeptas das questões do desenvolvimento;
    2. Criar um grupo de trabalho transversal que, de uma vez por todas, consiga olear os diferentes mecanismos ligados à cooperação internacional e que no cumprimento estrito da lei possa facilitar as diferentes ações através dos atores mais adequados para cada uma das situações.
  3. A nível bilateral:
    1. Influenciar os parceiros para a importância do setor;
    2. Capacitar os serviços aos mais diferentes níveis;
    3. Fortalecer os corpos docentes das universidades e de investigação e extensão;
    4. Facilitar estágios a jovens portugueses que queiram desenvolver o trabalho de campo para as suas teses nos países parceiros da Cooperação Portuguesa e em outros cujos temas possam ser importantes para a Cooperação Portuguesa;
    5. Apostar em projetos, quando for possível, de abordagens transversais e não apenas verticais. A segurança alimentar e nutricional engloba a produção, a transformação, a comercialização, a educação e o estado nutricional das populações com o objetivo específico das melhorais das condições de vida das populações através de uma abordagem holística.

Como já Kofi Annan referia em 2005 “o essencial é passar do compromisso à ação, aumentar a produtividade dos agricultores que produzem para a subsistência melhorando as qualidades dos solos e das sementes, a gestão da água e dos serviços paralelos à agricultura, apostar na nutrição dos grupos mais vulneráveis, revigorar e conservar os recursos naturais”.

 6 – Que exemplos concretos destacaria na promoção da segurança alimentar e nutricional nos países parceiros da cooperação portuguesa?

Neste aspeto, e recentemente, talvez a mais importante seja a participação através da CPLP no CONSAN ena participação havida na definição das “Diretrizes para a Agricultura Familiar”. Sendo uma atividade de cariz iminentemente político, tem tido o condão de colocar os chefes de governo e ministros a falar, até porque é moda, na Segurança Alimentar e Nutricional e a impulsionar alguns mecanismos que podem servir de suporte para um adequado diagnóstico da situação em cada país. Não sendo uma ação direta da cooperação portuguesa, a sua participação tem sido no sentido de impulsionar e não de travar.
Os projetos de que anteriormente falei no ponto anterior e outros que, de maior ou menor dimensão, são levados a cabo pelas Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) ou outros atores financiados pela cooperação portuguesa são importantes mas, na minha opinião, não resolvem estruturalmente o problema. Seria injusto não admitir que muitos deles deram e dão resultados razoáveis com impactos mensuráveis, como por exemplo o projeto de Cooperação Delegada UE-ACTIVA (Ações comunitárias territoriais integradas de valorização agrícola na Guiné Bissau), com uma abordagem transversal interessante. O problema é a era “pós”, passados alguns anos, pois os cuidados paliativos trazidos pelo projeto deixam normalmente de fazer efeito e tudo regressa, com maior ou menor rapidez, à estaca zero, quase sempre por falta de empenho ou possibilidades do país recetor.
Por experiência própria, sei que é mais fácil falar, escrever e criticar do que passar a ações que façam a diferença. Já estive envolvido no planeamento de projetos que tinham, na minha conceção, tudo para ter sucesso e falharam, bem como outros em que pouco acreditava e se revelaram um sucesso. A atualidade, em permanente e rápida evolução, não se compadece com projetos assentes em quadros lógicos rígidos e pouco flexíveis, em que ninguém tem coragem de dizer “o rei vai nu” só porque cumpre à risca os procedimentos.
É tempo de refletir, modificar mas, essencialmente, de agir, pois enquanto lerem este curto testemunho, algures por esse mundo alguns milhares de pessoas morreram de fome ou não terão a alimentação necessária para o seu adequado desenvolvimento.
Parafraseando um líder mundial já desaparecido, é tempo de perguntar a nós próprios “o que é que cada um de nós está disposto a fazer para termos um mundo melhor e mais justo?