Entrevista Coerente com Francisco Sarmento
Francisco Sarmento | Chefe do Escritório da FAO em Portugal
1 – Quais os principais desafios relativos à nutrição e combate à fome nos próximos anos, tendo 2030 como meta temporal?
Existem vários desafios e, provavelmente, todos eles relacionados. Porque precisamos de ter alguma individualização das prioridades, eu destacaria o acesso a uma alimentação adequada, em particular para os grupos mais vulneráveis e mais afetados pela insegurança alimentar e nutricional (como as mulheres, jovens, idosos, agricultores, dependendo do país). Para tal, é necessário investir na transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, baseados na agricultura familiar, o que pode contribuir para resolver alguns dos problemas relacionados com a insegurança alimentar.
A educação, no sentido mais lato, e a formação dos vários atores que concorrem para estes processos, particularmente dos agricultores nas geografias mais vulneráveis, é fundamental, pois não há transição para sistemas alimentares mais sustentáveis sem essa aposta.
A questão do acesso a recursos e a ferramentas para a produção em condições mais sustentáveis é importante, assim como a concessão de crédito – que os agricultores sempre necessitam e que parece ser esquecido em muitas abordagens – e a promoção do acesso aos mercados (o que diz respeito essencialmente a mercados locais, ou o que se designa por cadeias curtas).
A educação alimentar e nutricional é fundamental, incluindo um conhecimento das dietas tradicionais dos países, que em muitos casos proporcionam níveis de saúde mais elevados do que as dietas baseadas em produtos mais industrializados e que, portanto, devem ser valorizadas no contexto da educação alimentar. A ligação com as questões da saúde é cada vez mais urgente e tem de ser mais forte, incluindo a prevenção de patologias que resultam de uma prevenção inadequada (como a diabetes tipo II, a hipertensão, alguns tipos de cancro, etc.).
Um fator cada vez mais importante para fazer face aos desafios da segurança alimentar é o acesso à água, sobretudo para os mais carenciados e as populações mais vulneráveis. Num contexto de mudanças climáticas , a água assume um papel cada vez mais relevante, e não podemos continuar a assistir à necessidade de percorrer muitos quilómetros para se ter acesso a um balde de água, o que nos países do Sul continua a sobrecarregar especialmente as mulheres e assim afetando todo o agregado familiar. Neste âmbito, deve existir acesso a água de qualidade e a preços adequados, sendo necessário ter cuidado com os fenómenos de privatização do acesso à água.
É preciso envolver a sociedade como um todo, particularmente a sociedade civil e os grupos mais vulneráveis, uma vez que a participação social aumenta a eficiência e a eficácia das políticas públicas. É preciso também reforçar o diálogo entre os vários atores e os vários mecanismos de cooperação internacional; a coordenação e alinhamento de objetivos entre estes é também um desafio, que é percebido por todos, mas que ainda esta longe dos níveis adequados ao que seria necessário. As Nações Unidas têm feito esforços nesse sentido, procurando trabalhar de forma unificada nos países onde está presente, mas é um objetivo que deve ser mantido na agenda de trabalho para o futuro.
Todos estes desafios devem nortear a nossa ação nos próximos anos.
2 – Na sua opinião, quais as principais dificuldades no apoio internacional à segurança alimentar e nutricional (SAN) nos países em desenvolvimento?
Destaco três grandes níveis ou grupos de dificuldades. Em primeiro lugar, a questão da priorização política. Atualmente, temos consciência que as questões da fome, da desnutrição ou da má nutrição não se devem à ausência de alimentos, mas sim à incapacidade de acesso das pessoas a uma alimentação adequada para uma vida saudável. Colocar a alimentação no centro das estratégias de desenvolvimento, seja nos países do Sul ou do Norte, seria fundamental para responder a esses desafios.
A segunda dificuldade tem a ver com o acesso e uso da informação, porque muitas vezes os decisores não têm noção dos custos invisíveis da marginalização da alimentação no contexto dos programas de desenvolvimento. O peso para o setor da saúde é brutal e crescente, pois grande parte dos Ministérios da Saúde gastam pelo menos metade do seu orçamento a tratar doenças derivadas ou ligadas à alimentação. Por outro lado, os custos ambientais são muito expressivos, incluindo a degradação de terras, a menor disponibilidade de recursos hídricos e a desflorestação, os quais terão de ser pagos pelas gerações vindouras. Temos também custos sociais, porque de alguma forma temos falhado no fortalecimento da agricultura familiar, que é, na opinião da FAO, um dos setores que poderia dar resposta aos desafios existentes. Se a informação sobre a contabilização dos custos das migrações rurais-urbanas, do crescimento das cidades e do número de desempregados, dos custos ambientais e dos custos de saúde pública (derivados em parte da trajetória que temos tido no setor alimentar) fosse mais conhecida e divulgada, provavelmente teríamos uma maior priorização política para esta área como eixo central das políticas de desenvolvimento. É preciso sensibilizar, alertar, produzir estudos, disponibilizar e divulgar mais a informação sobre a importância da alimentação para o desenvolvimento.
Uma outra dificuldade, que é também um desafio, é a articulação de processos decisórios pelos atores envolvidos, uma vez que há múltiplos intervenientes, vários objetivos e diferentes interesses relacionados com a alimentação. Assim, seria muito importante não só conseguirmos maior articulação de interesses, mas também coordenar orçamentos e meios técnicos e financeiros, para sermos mais eficientes e eficazes na resposta aos desafios que hoje se colocam à segurança alimentar e nutricional. Isto implica, provavelmente, realizar inovações institucionais que permitam fazer essa coordenação e alinhamento, quer de meios quer de objetivos.
Tudo isto afeta os países em desenvolvimento em geral, mas as externalidades do setor alimentar são também muito expressivas nos países do Norte, pelo que os desafios são verdadeiramente globais.
3 – Que projetos ou ações da FAO pode destacar como exemplos de boas práticas, com resultados positivos para o reforço da segurança alimentar e nutricional?
Mais do que destacar este ou aquele projeto, gostaria de assinalar a trajetória recente da FAO, incorporando princípios que enformam os projetos da organização, e que nos indicam também qual o caminho para o futuro.
Um aspeto é a maior coordenação do trabalho da FAO com outras agências das Nações Unidas, por exemplo com a Organização Internacional das Migrações (OIM). África está a criar um volume de empregos muito menor do que aquele que seria necessário para fixar as suas populações, e a FAO tenta convencer os doadores internacionais e os países de que seria muito mais barato – falando apenas das questões económicas – fomentar ativamente o desenvolvimento agrícola e agroalimentar ao nível do continente africano, criando postos de trabalho e contribuindo para que as pessoas não sejam obrigadas a deslocarem-se, do que aquilo que é (ou vai ser) gasto a construir muros e em estratégias de segurança. Esta coordenação com outras agências é fundamental para podermos ter resultados mais amplos e é uma das estratégias claras da FAO, que acaba por influenciar todos os seus projetos.
Outro aspeto é o envolvimento de todos os atores relevantes, em particular das populações em situação de vulnerabilidade, segundo uma abordagem crescentemente baseada nos direitos humanos. Se as populações que, à partida, são mais vulneráveis estiverem no centro do processo de decisão, certamente teremos maior eficiência na utilização dos recursos.
Para além disso, assumiu-se a centralidade da agricultura familiar como motor dos processos de desenvolvimento sustentável, em interligação com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e tendo em vista a década dedicada à agricultura familiar, na qual a FAO muito se empenhou. Por outro lado, a tentativa de tornar o sistema alimentar mais sustentável do ponto de vista ambiental, social e também mais equitativo, passa pela transição para modelos de produção mais sustentáveis, nomeadamente incluindo as questões da agroecologia, as quais fazem parte, pela primeira vez, do trabalho “mainstream” da FAO, com um grupo já numeroso de Estados Membros a apoiarem este trabalho.
Apesar da existência de um modelo ainda dominante, a transição faz-se a partir do momento em que se consigam apontar outros caminhos válidos. É do interesse de todos, incluindo o setor agroalimentar mais convencional, que haja uma evolução positiva, porque de outra forma a extinção a médio e longo prazo é certa. Apontar caminhos alternativos é essencial, porque frequentemente as decisões de se manterem determinadas abordagens também são tomadas pelo facto de não se vislumbrarem estratégias alternativas. À escala global, é importante ter as Nações Unidas a sinalizar e a apontar caminhos possíveis.
Estas são trajetórias que a FAO tem vindo a experimentar e a incorporar, que há dez anos não existiam, e que continuarão certamente a ser reforçadas no futuro.
4 – A CPLP e a FAO têm tentado trabalhar de forma conjunta relativamente a várias questões da SAN. Quais os frutos deste trabalho?
Em 2008-9, o mundo viu-se confrontado com o perigo de não ter mecanismos de regulação, de coerência e de alinhamento dos países que permitissem fazer face a um eventual pesadelo de desregulação dos mercados agrícolas mundiais, das doenças relacionadas, etc. Fez-se um esforço para constituir uma espécie de câmara para a governação do sistema agroalimentar, que é o Comité Mundial de Segurança Alimentar. Este órgão recomendou, como primeiro passo antes de qualquer outro projeto ou ação, que os países compreendessem a necessidade de sentar à mesa todos os atores relevantes para mudar o sistema alimentar, conferindo a esses organismos uma prioridade nacional.
A CPLP foi a única comunidade de países do planeta que abraçou esta ideia e que conseguiu em todos os países, com exceção de dois (a Guiné Equatorial e Portugal, embora este último o deva realizar nos próximos meses), constituir estes órgãos de governança do sistema alimentar, liderados pelos seus Primeiros Ministros e aprovados por Conselho de Ministros e, em alguns casos, também pelos Parlamentos, que significa que passa a ser uma política de Estado e não apenas de Governo.
Houve, portanto, uma decisão internacional no quadro das Nações Unidas que apontou qual o primeiro ponto fundamental para avançar, e nenhuma outra região conseguiu fazê-lo de forma coordenada. Isto demonstrou uma vontade política, não apenas dos Governos, mas também uma mobilização dos parlamentares, da sociedade civil, do setor empresarial, das universidades– todos estes atores participantes nos conselhos nacionais de cada país e no seu espelho regional (o CONSAN).
Por outro lado, a CPLP foi também a única região a aprovar diretrizes sobre agricultura familiar, que fornecem orientações aos países sobre o que devem fazer concretamente nesta matéria. No quadro destas diretrizes, os países acordaram que deviam começar por duas ações concretas: chegar a um acordo e entendimento comum sobre o que constitui a agricultura familiar, em cada contexto nacional, e definir uma lei para esses atores. Com efeito, não faltam recursos financeiros para apoiar a agricultura familiar, mas estes recursos são por vezes apropriados por atores com uma dimensão que não corresponde aos que mais precisariam desse apoio. Esta definição é, assim, fundamental.
Queremos obviamente que este enquadramento institucional e legal se materialize em políticas e programas diferentes, mas tal não seria possível se as premissas e o enquadramento não tivessem sido definidos.
Para além das grandes vitórias, há também outras mais pequenas, e por vezes tão relevantes quanto as primeiras. Entre os exemplos estão a Lei do Direito Humano a uma Alimentação Adequada, em Cabo Verde, o facto de São Tomé e Príncipe ser hoje o país africano com maior crescimento de área agrícola para produção agroecológica e biológica (na contramão do que se tem verificado noutros países do continente), ou o apoio maciço que Angola tem dado à agricultura familiar e a influência que tal tem tido noutros países da região dos Grandes Lagos. Estas vitórias são muito importantes para os países, embora nem sempre tenham grande visibilidade. E todos estes exemplos estão influenciados por um dinamismo que a própria Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP colocou em marcha, nomeadamente em termos de diálogo, coordenação, inclusão e união entre vários atores.
Este processo tem suscitado grande interesse e já há vários organismos internacionais que querem conhecer mais e aprender com o processo da CPLP nesta matéria, que é único no contexto internacional.
Obviamente que, apesar de todos os progressos, devemos querer sempre avançar mais, até porque nesta questão da fome o único objetivo aceitável é zero.