ENTREVISTA COERENTE COM AVELINO BONIFÁCIO
1. Quais os principais desafios da segurança alimentar em Cabo Verde e como é que estes se interligam com o desenvolvimento do país?
A história de Cabo Verde regista fomes cíclicas, das quais se destacam algumas nas décadas de 20 e de 40 do século XX, que dizimaram dezenas de milhares de residentes e sujeitaram outros tantos a contratos-escravos de trabalho nas “Roças do Sul”, numa estratégia de mero adiamento da morte, com marcas na sociedade cabo-verdiana que a história ainda não conseguiu reparar. A última situação de fome que o país conheceu data do início dos anos setenta do século passado, pouco antes da independência nacional. A causa primeira da insuficiente disponibilidade de alimentos em Cabo Verde tem a ver com o défice de produção interna, causado pelas agrestes condições naturais, com destaque para a insuficiente e irregular precipitação, agravada por secas cíclicas muito severas, que reduzem a já permanente fraca capacidade produtiva endógena de alimentos, situação que, quando acompanhada de abandono das autoridades, resultou sempre em grandes mortandades. Apesar dos progressos consideráveis alcançados desde a independência no combate à pobreza, Cabo Verde ainda não erradicou a fome e, segundo a FAO, cerca de 20% da sua população sofre de insegurança alimentar. E, quase que num alerta para não baixar a guarda, na sequência de mais um ano de seca extrema, a FAO acaba de publicar o seu Relatório, alargando de 37 para 39 a lista de países em emergência alimentar, com risco de fome e a necessitar de ajudar externa, tendo incluído Cabo Verde e o seu vizinho Senegal. Perspetivar a segurança alimentar em países que enfrentam situações de emergência alimentar deve começar pelo combate à fome e à subnutrição. Num mundo tão globalizado, e ao mesmo tempo, tão desigual, vencer a fome e a subnutrição constitui uma questão de vontades, se não de egoísmo: vontade das lideranças dos países que enfrentam situações de emergência alimentar e de subnutrição, em adotar políticas perenes de promoção e de incentivo à produção, transformação, logística e distribuição de alimentos, de origem agrícola, pecuária e das pescas, e vontade das grandes potências mundiais, principalmente aquelas do setor dos alimentos, em dotarem-se de políticas de promoção das suas economias, nomeadamente, nos setores da agricultura, da pecuária e das pescas, mas que não aniquilem esses mesmos setores nos países em desenvolvimento. Perspetivar e planear o desenvolvimento não deve, e não pode, estar condicionado à plena resolução dos problemas da segurança alimentar e nutricional, devendo antes, ter esses desideratos como uma das suas metas prioritárias. Combater a fome e perspetivar a segurança alimentar e nutricional em Cabo Verde é, antes de mais, falar do acesso físico aos alimentos, que terá de continuar a ser garantido, particularmente, pela via da importação, com especial realce, nos anos de seca severa, como está sendo 2017/18. Não obstante, não podemos pensar em “segurança alimentar e nutricional” sem alcançar um nível mínimo de cobertura das nossas necessidades alimentares com a produção interna. A agravar as condições naturais adversas, a condição de país pequeno e fragmentado, com imensas dificuldades de ligação, sobretudo marítima, condiciona a unificação do mercado interno e, consequentemente, a distribuição inter-ilhas de alimentos, tanto os de produção local como de importação, dificultando a disponibilização de alimentos próximo das populações. Por outro lado, a condição de pobreza em que ainda vive cerca de 30% da população do país, dos quais cerca de 10% em extrema pobreza, constitui um forte condicionante económica para uma grande franja da população poder aceder aos alimentos. Essa dificuldade é acrescida pelo preço elevado dos alimentos, gerado pelas condicionantes de importação, logística e distribuição interna de alimentos. A situação de maior insegurança alimentar ocorre, naturalmente, nas ilhas periféricas, com maiores dificuldades de ligação; no meio rural, que alberga cerca de 38% da população, mas onde vivem cerca de 53% dos pobres do país; e nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres, que constituem cerca de 49% e que são, geralmente, também as mais numerosas. Assim, perante a realidade crua e os fortes condicionantes estruturais de acesso físico e económico aos alimentos, a questão da qualidade dos mesmos torna-se num luxo, que está além dos sonhos de uma boa parte dos cabo-verdianos. Os níveis de desigualdade em Cabo Verde são gritantes e tendem a agravar-se. O salário constitui a principal, se não a única, fonte de rendimento para a larga maioria da população. Os desníveis salariais são grandes, o salário mínimo (em implementação) é baixo e o desemprego é elevado. O rendimento do salário, quando existe, não garante condições de acesso económico à segurança alimentar e nutricional para uma larga franja da população. Entretanto, o país não alcançará o almejado e sonhado desenvolvimento com uma parte tão significativa da sua população a passar fome ou a viver em situação de permanente emergência alimentar e nutricional. Não obstante, o país nunca cruzou os braços e, apesar de opções, soluções e ritmos díspares, os Governos procuraram sempre adotar políticas de promoção e incentivo à melhoria alimentar e nutricional. Foi assim que, ainda em 2007, adotou o Programa Nacional de Segurança Alimentar para o horizonte 2011, programa esse que, após avaliação da sua implementação, foi atualizado para o horizonte 2020, passando a incorporar também as preocupações nutricionais.
2. Que influência tem o contexto internacional? Que dificuldades e incoerências apontaria ao apoio internacional à segurança alimentar e nutricional em Cabo Verde?
Cabo Verde sempre foi muito aberto ao mundo. Nasceu, enquanto país e nação, da necessidade que os portugueses sentiram de romper as suas próprias barreiras do isolamento a Norte e abrirem-se ao mundo, em busca de uma outra rota que os pudesse levar às riquezas da Índia. A esse espírito aventureiro dos seus descobridores, donatários e traficantes de seres humanos, veio juntar-se à necessidade que os seus primeiros homens livres sentiram de escapar às fomes e mortandades, arranjando emprego ou fugindo nos barcos que nas suas costas ancoravam, em busca de abastecimento em água, alimento e combustível e, já mais tarde, sujeitarem-se aos já referidos contratos-escravos para as terras do Sul. Cabo Verde é, por conseguinte, um dos primeiros resultados, melhor dizendo, das primeiras consequências, da globalização, na sua forma mais dramática que a história alguma vez registou – a escravatura. Isso faz deste país e suas gentes, muito abertos e sensíveis às influências do que ocorre no mundo, especialmente nas principais potências (Estados Unidos da América e Europa Comunitária), quer porque a sua economia está, em mais de 80%, diretamente dependente das economias desses países, quer porque possui ali comunidades emigradas expressivas, cujo número ultrapassa a própria população residente, contribuindo com as suas remessas para ajudar os familiares que ficaram nas Ilhas, quer ainda porque são oriundos desses países as principais ajudas que Cabo Verde recebe, enquadradas no apoio ao desenvolvimento. As ajudas internacionais, particularmente a sua componente de ajuda à segurança alimentar, constituem um eixo importantíssimo da cooperação internacional, que tem contribuído para aliviar a fome no mundo e ajudar a salvar milhões de pessoas da morte, todos os anos. A ajuda alimentar, sobretudo no momento em que ela vem sendo atribuída, tem sido bem- -vinda e, no caso específico de Cabo Verde, foi determinante para que o país pudesse, hoje, estar a perspetivar a erradicação da fome e a traçar estratégias de segurança alimentar e nutricional. Não obstante, ela não está isenta de críticas. A ajuda alimentar adotou, há décadas, um carácter humanitário e, parecendo contentar-se em fixar as nações e os povos beneficiários à condição de seus dependentes eternos, não tem, praticamente, evoluído, no sentido de uma ajuda verdadeiramente ao desenvolvimento, que seja capaz de criar uma base produtiva endógena e que conduza, a prazo, a alguma autonomia, preservando, antes, elementos de alguma humilhação e de indignidade. Cabo Verde foi um dos poucos, talvez o único país que, recém-independente, e numa situação de penúria alimentar severa, questionou as modalidades da ajuda alimentar então concedidas e “forçou” os doadores a aceitarem que as suas ajudas fossem vendidas (e não distribuídas gratuitamente) e o remanescente fosse investido, num primeiro momento, para construir infraestruturas de proteção e conservação de solos e de retenção de água e, num segundo momento, para financiar empregos públicos que permitiam abrir estradas de acesso e construir outras infraestruturas públicas, nomeadamente nos setores da educação e da saúde. No caso da Europa Comunitária, esse seu apego à ajuda alimentar humanitária, ao invés da ajuda ao desenvolvimento da segurança alimentar (numa aparente contradição de preferir “dar sempre o peixe, em vez da cana e do engenho da pesca”) não está dissociado da sua política agrícola comum, que se baseia na atribuição de bilhões de subsídio aos seus produtores agrícolas e pecuários, para bloquear a concorrência, não só no seu espaço, dos produtos originários dos países beneficiários da sua ajuda alimentar, mas nos espaços desses próprios países, aniquilando as suas produções e forçando-os a comprarem os produtos subvencionados e, pontualmente, compensar-lhes com umas ajudas humanitárias, que asseguram as suas populações nas fronteiras da vida, mas consumidores sempre ativos. Em relação a Cabo Verde, em concreto, a acrescentar a essa e a outras incongruências da ajuda ao desenvolvimento no capítulo da segurança alimentar, de natureza mais comum, há ainda a destacar o chamado “Acordo de Pesca”, negociado e de “comum acordo” assinado, do qual, porém, se faz depender um conjunto de outras “cooperações”, as quais o país não está em condições de abrir mãos, que permite que quase uma centena de embarcações de pesca da União, em simultâneo, possa pescar nas nossas zonas económicas exclusivas, supostamente fiscalizadas pelas nossas autoridades e inspetores, a troco de míseras centenas de milhares de euros.
3. Que projetos ou ações destacaria como sendo importantes nesta área?
A segurança alimentar e nutricional das regiões e países mais afetados e em risco só poderá ser uma meta alcançável numa sinergia de esforços internos, regionais e internacionais, de menor egoísmo e maior disponibilidade para a partilha, numa escala cada vez mais global, não só dos prejuízos, mas também dos benefícios, de maior equilíbrio na adoção de políticas mais sustentáveis e de maior justiça na redistribuição dos rendimentos gerados. A cooperação para uma verdadeira segurança alimentar requer que o enfoque seja colocado na adoção de políticas que permitem maximizar as potencialidades de produção de todas as regiões e países, introduzindo, obviamente, correções que o mercado, por si só, não regula, mas nunca num egoísmo, exacerbado, de maximização de uns, à custa do aniquilamento de outros. No caso concreto de Cabo Verde, na impossibilidade de subjugar a natureza, o nosso desafio maior, a nível interno, será o de potenciar o máximo a exploração dos escassos recursos naturais de que dispomos, e da forma mais sustentável possível, nomeadamente, na mobilização de água em todos os meios disponíveis e possíveis, e seu consumo eficiente, e na conservação e proteção de solos. Assim, a prioridade deve ser dada ao (i) aumento da produção, com tecnologias que permitem aumentar a produtividade, com cada vez menor consumo de água e solo, (ii) utilização, a custo comportável, da água do mar para agricultura e pecuária, (iii) melhoria das raças para aumento da produtividade animal, (iii) renegociação do essencial do atual Acordo de Pesca para colocar os recursos pesqueiros ao serviço do interesse nacional, (iv) apostar na conservação e transformação de produtos agrícolas, da pecuária e das pescas, para quebrar os ciclos da sazonalidade e (v) desenvolver um sistema eficiente de transporte marítimo para unificar o marcado e melhorar o acesso físico e económico dos alimentos à população. No domínio das nossas relações externas, Cabo Verde terá de continuar a desafiar os seus parceiros de cooperação, provando que, mais do que qualquer outro, conhece as suas necessidades e prioridades e está verdadeiramente empenhado em adotar soluções certas e sustentáveis, gerindo bem os seus próprios recursos, mas também os que lhe forem atribuídos pelos doadores. A prioridade será atrair, enquanto é tempo de forma programada e sustentável, financiamentos e donativos para investir em projetos que, não só evitam que o país volte a cair nas malhas da ajuda alimentar humanitária, mas possa ganhar o desafio da segurança alimentar e nutricional e se posicione, definitivamente, no caminho do seu desenvolvimento.
Avelino Bonifácio, Consultor
Cabo Verde – O Caso de Cabo Verde