ENTREVISTA COERENTE COM JEAN SALDANHA

Jean Saldanha | Senior Policy Advisor, CIDSE – Together for Global Justice


1 – Pode explicar o que é a justiça tributária e quais as principais incoerências nesse sentido? De que maneira a justiça financeira / tributária pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e inclusivo?

Graças aos esforços do movimento de justiça tributária internacional e aos escândalos expostos pelas Swiss-leaks, Lux-leaks, Panama papers e Paradise papers, tem-se vindo a tornar uma parte importante do debate público até que ponto a fuga e evasão fiscal e práticas similares contribuem para o aumento da pobreza, desigualdade social e instabilidade económica.

Os impostos (e, em diferentes proporções, também as tarifas e royalties) são o principal instrumento pelo qual os cidadãos e as empresas contribuem para o bem comum da sociedade, já que os seus serviços e recursos dependem dele. O investimento privado e o comércio só podem promover o crescimento e o desenvolvimento em favor dos pobres quando esse mecanismo básico funciona adequadamente. Esta é também uma pré-condição necessária para um país se tornar e permanecer autossuficiente, independente de fluxos de ajuda externa e empréstimos insustentáveis.

A imagem generalizada de países intrinsecamente pobres, dependendo da ajuda externa de países ricos generosos, é equivocada. A maioria dos países em desenvolvimento possui uma riqueza de recursos naturais e humanos domésticos. O principal problema são os obstáculos a nível nacional e internacional que impedem que estes recursos sejam utilizados para financiar bens públicos em benefício de toda a população e especialmente dos pobres. Pense-se nos recursos públicos necessários para construir escolas, hospitais, bibliotecas públicas ou financiar a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em geral.

Alguns dos maiores obstáculos são:

  1. Falta de rastreabilidade e regulação do capital por causa da mobilidade crescente e descontrolada do capital devido à globalização e à liberalização dos mercados financeiros. Isto leva a dificuldades nos países desenvolvidos e em desenvolvimento para taxar o capital e regular a fuga de capitais em tempos de crise. A menor receita de impostos sobre o capital aumenta a pressão fiscal sobre o consumo e os salários, colocando uma carga relativamente alta sobre os pobres e as mulheres em particular. Quase 10% da riqueza do mundo é mantida offshore por alguns poucos indivíduos1.
  2. Concorrência fiscal dos países anfitriões para atrair investidores estrangeiros através de todos os tipos de incentivos, feriados e benefícios. Isto é usado pelas Empresas Transnacionais (ETN) para minimizar o pagamento de impostos, levando a uma “corrida para baixo” nos impostos sobre sociedades e colocando os governos sob pressão para reduzir os gastos públicos ou aumentar os impostos que têm efeitos regressivos, particularmente impostos sobre o consumo. Da mesma forma, os empreendedores locais muitas vezes enfrentam concorrência desleal contra empresas estrangeiras às quais são oferecidas isenções fiscais. Além de beneficiarem dos privilégios tributários devido à concorrência fiscal intergovernamental, as ETN têm-se aproveitado do comércio significativo entre as suas múltiplas empresas para desenvolver estratégias complexas de fixação desadequada de preços, de maneira a evitar o pagamento de impostos (ou seja, preços de transferência) e transferir os seus lucros. Por exemplo, as ETN manipulam estruturas de capital intraempresa para transferir lucros de países com impostos altos para países com impostos baixos. Os relatórios anuais e as normas contabilísticas das empresas transnacionais não fornecem informações precisas sobre onde a empresa está ativa nem sobre os seus respetivos volumes de negócios, lucros e impostos pagos por ano fiscal. Essas estruturas de preços falsificados e estruturas de capital distorcidas / manipuladas, combinadas com a falta de transparência, são os principais canais para evitar impostos. De acordo com estimativas recentes, mais de 600 mil milhões de euros são deslocados artificialmente por multinacionais para paraísos fiscais a cada ano.2
  1. Aumento da importância das jurisdições de sigilo, que fornecem abrigo para evasão fiscal. De acordo com o Índice de Sigilo Financeiro publicado em fevereiro de 2018, existem mais de 112 paraísos fiscais.3 Portugal (Madeira) está classificado no 64º lugar deste índice. A Rede de Justiça Fiscal estima que 21 a 32 biliões US $ sejam mantidos em centros financeiros offshore.4 Além disso, as jurisdições de sigilo contribuem para a instabilidade financeira e crises financeiras que afetam desproporcionalmente os pobres.5
  2. A margem legal dos paraísos fiscais oferece um abrigo para as saídas ilícitas de financiamento e corrupção. Ativos saqueados por ditadores e funcionários estão muitas vezes escondidos por trás do sigilo bancário, trusts, fundações ou outros veículos para fins especiais que permitem o anonimato. A cooperação judicial precisa de ser significativamente melhorada, inclusive entre os países ricos, e a propriedade real de qualquer tipo de entidade legal deve ser acessível às autoridades judiciais e fiscais. O repatriamento de fundos ilícitos poderia ser um longo caminho para fornecer recursos necessários para o desenvolvimento.6
  1. Os conselhos e as condições das instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, e os doadores, muitas vezes pressionam os países em desenvolvimento a avançar para a liberalização do comércio, desregulamentação dos fluxos de capital, isenções fiscais para atrair investimentos estrangeiros e metas fiscais restritivas. Tais políticas neutralizam os esforços para mobilizar apropriadamente receitas muito necessárias para aumentar os gastos em saúde, educação ou a implementação de programas orientados pela demanda para estimular a economia. Na maioria dos países em desenvolvimento, os impostos não podem compensar perdas maciças de receitas tarifárias causadas pela liberalização comercial imposta externamente.7 A tentativa de compensar a receita perdida tende a aumentar a tributação sobre bases tributáveis menos móveis, como consumo e trabalho, que têm um caráter regressivo e atingem especialmente os pobres. No Brasil, entre 1996 e 2001, os impostos sobre o rendimento do trabalho aumentaram 27% e os encargos de subscrição da segurança social aumentaram para 66%, enquanto os impostos sobre o rendimento das sociedades diminuíram 16% e o imposto sobre a propriedade rural caiu para metade.8
  1. No âmbito das finanças públicas, as questões de género não são suficientemente consideradas para os gastos públicos e para as políticas públicas de arrecadação de receitas em geral e para a tributação em particular. Homens e mulheres podem ser afetados diferentemente por impostos, assim como pela erosão do financiamento público, porque as condições socioeconómicas e a situação de homens e mulheres diferem em relação ao emprego, renda, responsabilidade por cuidados não-pagos, acesso e disposição de recursos e porque podem ser encontradas diferenças comportamentais específicas de género.

Desde o início do novo milénio e cada vez mais depois dos grandes escândalos, estas questões foram abordadas pela sociedade civil, o Fundo Monetário Internacional, a ONU, a OCDE, o G20, a União Africana, a União Europeia, etc. O progresso é limitado porque a governança tributária global ainda não está efetivamente organizada. Uma das principais exigências da sociedade civil desde a última Conferência Internacional de Financiamento para o Desenvolvimento, em Adis Abeba, em 2015, é a criação de um órgão tributário global sob os auspícios da ONU. Esta questão permanece sem solução na agenda tributária internacional.

Uma conquista importante na defesa da justiça tributária é a inclusão desta questão no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 (promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável; proporcionar acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis). Uma meta do Objetivo 16 trata de fluxos financeiros ilícitos, incluindo a evasão fiscal no exterior e a evasão fiscal de empresas multinacionais. Graças às plataformas da sociedade civil para a transparência fiscal, será possível usar essa meta para garantir a prestação de contas no nível nacional.

2 – Nos últimos anos, quais foram as principais conquistas e dificuldades na implementação de mecanismos inovadores para financiar o desenvolvimento, como o imposto sobre transações financeiras?

Intimamente ligados à justiça tributária internacional, há algumas questões que são discutidas atualmente sob o título de “fontes inovadoras” para o financiamento do desenvolvimento. Estas ganharam atenção crescente após a crise financeira de 2008, à medida que os governos procuravam novas maneiras de aumentar as receitas e financiar o desenvolvimento internacional e outros compromissos. Embora o foco principal destas discussões seja o levantamento de recursos financeiros inovadores (como a Lotaria e Imposto do Selo), algumas propostas também abordam a questão de uma justa redistribuição dos lucros da globalização e os benefícios e custos do financiamento de bens públicos globais por impostos internacionais como o Imposto sobre Transações Financeiras (ITF). A sociedade civil tem promovido ativamente o ITF como um instrumento para tributar o crescimento explosivo dos mercados financeiros nas transações de divisas à vista, pela sua viabilidade e pelos seus efeitos. Um imposto cobrado sobre todas as transações financeiras (à vista e derivativas) que vão além das transações de divisas para incluir ações, títulos, etc. e derivativos relacionados (contratos de taxas de juros, futuros, opções) ampliaria a base tributária e poderia gerar receita significativa, mantendo a taxa de imposto baixa. Este imposto pode contribuir para a estabilidade dos mercados financeiros, uma vez que será mais fortemente sentido em transações de curto prazo.

Uma grande vitória da campanha do ITF foi a decisão da Comissão Europeia em 2013 de criar uma nova legislação da UE para permitir a introdução do ITF para os Estados-Membros dispostos a fazer parte do chamado “acordo de cooperação reforçada”. Portugal entrou no grupo de países para discutir o acordo de cooperação reforçada do ITF no início do processo. No entanto, ficou logo claro que a proposta na mesa se concentrava principalmente no elemento do potencial aumento de receita do imposto. O potencial regulatório foi diluído em todas as etapas do processo de negociação. Ironicamente, à medida que a base tributária (e potencial regulatório) foi reduzida, a receita projetada que o ITF proposto poderia aumentar também foi reduzida. No atual estado da discussão, as receitas são projetadas para serem menos da metade (entre 16,6 e 19,6 mil milhões de euros) das receitas originalmente projetadas (57 mil milhões de euros).

A próxima questão importante é saber se a receita do ITF estará comprometida com o cumprimento dos compromissos internacionais de desenvolvimento, como foi colocado em cima da mesa pela sociedade civil. Estão a ser apresentadas várias propostas para a utilização das receitas, desde a disponibilização de espaço fiscal para abordar o emprego dos jovens, o aumento das despesas sociais na Europa, o orçamento europeu e o desenvolvimento ou compromissos em matéria de financiamento climático.

3 – O impacto das corporações nos direitos humanos e no desenvolvimento é enorme em vários países e cada vez mais importante. Na sua opinião, os quadros globais e europeus existentes são adequados para promover uma contribuição positiva das empresas para o desenvolvimento?

As empresas de todos os tipos são uma parte vital de nossa sociedade, mas atores poderosos do setor privado podem ter impactos negativos e positivos. Em 2016, quase quatro pessoas morreram por semana ao protegerem as suas terras de indústrias como a mineração, a extração de madeira e agronegócios em países como a Colômbia e as Filipinas. Em novembro de 2015, a barragem de mineração da Samarco entrou em colapso, o pior desastre ambiental da história do Brasil, afetando centenas de milhares de pessoas. Existe uma forte exigência das comunidades no terreno por uma ação internacional urgente para combater os desequilíbrios flagrantes no poder entre as ETN e as pessoas e garantir a proteção dos Direitos Humanos.

Estruturas não obrigatórias, princípios orientadores e pactos existentes mostraram-se ineficazes para prevenir violações dos Direitos Humanos e frustraram a maioria das tentativas de reparar ou compensar os casos mais flagrantes de violações.

Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por unanimidade os Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos. É um instrumento que consiste em 31 princípios que implementam o quadro “Proteção, Respeito e Solução” da ONU [“Protect, Respect and Remedy”]. Desde a sua adoção, tem havido esforços desiguais para desenvolver planos de ação nacionais a nível estatal com diversos níveis de envolvimento da sociedade civil e com diversos níveis de eficácia.

Os processos do Plano de Ação Nacional (PAN) aumentaram a consciencialização do público dentro dos governos e parlamentos e alguns contêm elementos positivos. Ao mesmo tempo, os atuais PAN têm claras lacunas, limites e deficiências quando se trata de medidas concretas para promover diligências devidas vinculantes aos Direitos Humanos e o melhor acesso à justiça, bem como para reconhecer obrigações extraterritoriais do Estado e a primazia dos Direitos Humanos sobre acordos de comércio e investimento. Parte do problema é que estas questões não são tratadas adequadamente nos Princípios Orientadores.

Em 2014, 20 membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU votaram o seu apoio a uma resolução elaborada pelo Equador e pela África do Sul para estabelecer um grupo de trabalho intergovernamental aberto para elaborar um instrumento vinculativo internacional sobre ETN e outras Empresas Comerciais com relação aos Direitos Humanos. Com um escopo e base suficientes, um tratado vinculativo poderia ir muito além dos mecanismos existentes estabelecidos com base nos Princípios Orientadores para fortalecer os mecanismos preventivos e reforçar a abordagem de devida diligência, dando-lhe uma natureza juridicamente vinculativa. Com um projeto de proposta de texto para o tratado vinculativo agora em discussão, cabe agora aos Estados trabalhar juntos e negociar o texto final, assegurando a adoção do Tratado num futuro próximo.

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1 Zucman, 2017: https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/nov/08/tax-havens-dodging-theft-multinationals-avoiding-tax

2 Idem.

3 https://www.financialsecrecyindex.com/introduction/fsi-2018-results

4 Tax Justice Network 2018 https://www.financialsecrecyindex.com/

5 Oxfam (2000) Tax havens: Releasing the hidden billions for poverty eradication, Oxfam Briefing Papers, Oxford. O artigo dá o exemplo do Serviço de Banca Internacional de Bangkok (BIBF) na Tailândia, que atuou como um canal para fluxos de capital de curto prazo no Leste da Ásia – funcionando como centro offshore, que concede incentivos fiscais e isenções de exigências regulatórias. Estas práticas prepararam o caminho para a crise asiática que empurrou 1 milhão para a pobreza na Tailândia e levou a uma duplicação do número de pessoas que vivem na pobreza na Indonésia. (vd. Bank for International Settlements (1998), 68th Annual Report, Basel). Cf. Financial Stability Forum (2000) Report of the Working Group on Offshore Centres (point 36).

6 Um estudo da CCFD estima que a quantidade sacada pelos ditadores dos países do Sul nas últimas décadas entre os 100 e os 180 mil milhões US $ (CCFD, 2007) Biens mal acquis… profitent trop souvent. La fortune des dictateurs et les complaisances occidentales, Paris).

7 Um estudo feito por investigadores do FMI, ao analisar um painel de informações de 125 países, concluiu que os países em desenvolvimento conseguiram recuperar entre 35 e 55 cêntimos por dólar de rendimento proveniente de rendimento perdido, ao passo que os países menos desenvolvidos praticamente não recuperaram nada. (Baunsgaard, Thomas and Keen, Michael (2004) Tax Revenue and (or?) Trade Liberalization. Washington DC.)

8 GRESEA (2003) La Justice fiscale pour le développement social – Etudes de cas: Brésil et Algérie, pp. 17-18, Brussels.