ENTREVISTA COERENTE COM SANDRA LIMA COELHO

Sandra Lima Coelho | Docente da Católica Porto Business School Associação Diálogo Acontece

Poderá o Comércio Justo ser uma ferramenta para o desenvolvimento e um modelo comercial de luta contra as desigualdades?

Nas sociedades modernas, a comercialização de mercadorias caracteriza-se pela iniquidade e assimetrias entre países do Norte e Sul geopolíticos. O Comércio Justo surgiu como um movimento da sociedade civil, num contexto global de desigualdade económica, no final da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de lutar contra esta iniquidade e assimetrias. Esta luta materializa-se na alteração das regras que pautam o comércio internacional e que impedem o acesso dos pequenos produtores do hemisfério Sul aos mercados dos países que se situam no Norte do hemisfério. Desde então, este movimento tem vindo a evoluir e a consolidar-se como um modelo comercial alternativo ao sistema comercial convencional.

O Comércio Justo desenvolveu-se, no final da década de 1960, como um movimento social de contestação e de solidariedade internacional. Afirmou-se como um movimento através do qual os cidadãos manifestam, por via dos seus atos de consumo, a sua afinidade com um sistema comercial que assenta em valores morais como a justiça social, a igualdade de género, a proteção ambiental e a defesa dos direitos das crianças. Podemos afirmar que o Comércio Justo procura, fundamentalmente, ser uma alternativa ao comércio convencional, porque este último não respeita “regras e valores fundamentais, tais como os direitos humanos, sociais, o ambiente” (Bucolo et al, 2009: 17) no que concerne à população do hemisfério Sul.

Agindo diretamente sobre as práticas comerciais, tanto nos países do Norte como nos do Sul, o Comércio Justo procura demonstrar a viabilidade de outros princípios e regras de mercado, assim como “outros modelos de produção, de consumo e de comercialização, que repousem na redefinição das relações de produção e de troca, que sejam coerentes com os princípios de justiça e de responsabilidade, com vista a garantir o equilíbrio ecológico” (idem, 24).

O Comércio Justo regista também preocupações análogas a outros movimentos sociais que lhe são próximos, nomeadamente, os movimentos de proteção ambiental e de luta pelos direitos humanos, que se centram, respetivamente, no desenvolvimento da produção regida por critérios ambientais, assente na agricultura biológica e de uma organização dos processos de trabalho e de produção mais democráticos e que não discrimine as mulheres. Low e Davenport (2005: 494) caracterizam-no como um “movimento social global, que agrega duas vertentes – um modelo alternativo de negócio, e ativismo político”. Este ativismo político está presente na ideologia de base deste movimento na busca de maior equidade nas relações comerciais e na procura de garantia de melhores condições de vida para os pequenos produtores.

O Comércio Justo tem atuado no sentido de garantir o acesso dos pequenos produtores aos mercados internacionais e lidar diretamente com corporações transnacionais (Fridell, 2007). Na década de 1980, o Comércio Justo foi crescendo na Europa, graças à consolidação das organizações importadoras e à multiplicação dos pontos de venda, especialmente, dos seus canais regulares de distribuição, conhecidos como worldshops ou “lojas do mundo”. Cresceram, igualmente, as campanhas de sensibilização e divulgação do conceito de Comércio Justo, o que contribuiu para um maior conhecimento acerca desta realidade.

Podemos caracterizar o Comércio Justo como uma abordagem alternativa ao comércio internacional, mas também como um movimento social com especificidades que o colocam junto dos movimentos anti e alter globalização de luta contra o atual sistema capitalista hegemónico. Globalmente, o Comércio Justo aspira a constituir um modelo económico alternativo, baseado em critérios sociais, ao invés do que sucede com o atual sistema económico em vigor, cujas raízes brotam de critérios económicos. Para tal, o Comércio Justo defende os direitos dos pequenos produtores, e procura proporcionar-lhes, através da venda dos seus produtos, melhores condições de vida. O envolvimento do produtor neste sistema é imprescindível e cabe-lhe ter voz ativa nos processos de tomada de decisão, nomeadamente, no estabelecimento de um preço justo atribuído ao seu produto. A relação comercial que se institui entre as organizações de promoção de Comércio Justo e os pequenos produtores afigura-se duradoura, devido ao pré-financiamento da produção, o que possibilita uma ligação de longo prazo e é um dos elementos-chave desta modalidade comercial.

De facto, no Comércio Justo instauram-se relações comerciais diretas, contínuas e duradouras. São relações diretas entre organizações de importação e grupos de produtores, geralmente, constituídos em cooperativas, o que permite suprimir algumas fases de intermediação do processo comercial. Sendo relações comerciais que perduram no tempo, em função do estabelecimento de contratos a longo prazo, permitem o planeamento e a realização de programas de autodesenvolvimento fomentados e geridos pelos próprios produtores. Na prática, as organizações de Comércio Justo garantem um pré-financiamento aos produtores, no valor de 50% do preço do fornecimento, de modo a evitar que estes se endividem para prover ao processo produtivo, uma vez que é usual que as comunidades de produção não disponham de um capital de arranque suficiente para adquirir as matérias-primas necessárias à conceção dos produtos. As organizações de importação e exportação proporcionam, além disso, serviços de assistência para melhorar as capacidades dos artesãos, da produção, da inovação e da qualidade do produto e organizam cursos de formação para reforçar as capacidades dos produtores, no que concerne às suas competências de gestão, contabilidade e cálculo dos custos. O modo como o pagamento aos produtores se efetiva é, então, um dos componentes mais sui generis deste movimento.

Outra das bandeiras do Comércio Justo é a de conferir um preço justo ao que é produzido. Esse preço estabelece-se através do diálogo e da participação dos produtores no processo, o que permite determinar um pagamento considerado justo pelos produtores e que possa ser suportado pelo mercado. Este preço justo caracteriza-se por uma remuneração socialmente aceitável, considerando o contexto local de vida do produtor (Lecomte, 2004; Bécheur e Toulouse, 2008; Bucolo et al, 2009). O preço justo contempla o princípio da igualdade de pagamento para funções idênticas, tanto para homens como para mulheres e deve ressarcir, sobretudo, o seu trabalho e também os recursos utilizados. Reside, portanto, num princípio de igualdade de tratamento que assenta em critérios universais de não discriminação. Além disso, deve conferir às comunidades de produtoras margens suficientes para proporcionar serviços sociais à disposição de todos os seus membros.

O respeito pelo meio ambiente é, igualmente, uma das pedras angulares deste movimento. O Comércio Justo procura manter a sua atividade económica de modo a minimizar o impacto no meio ambiente e a maximizar o uso de materiais e de técnicas de produção que não provoquem degradação ambiental, que minorem a poluição e os consumos de energia, promovendo, assim, pequenos passos rumo a um desenvolvimento sustentável em todas as fases de produção e comercialização. Neste sentido, o Comércio Justo privilegia e apoia a produção de cariz biológico e o recurso a materiais recicláveis, de modo a diminuir o impacto dos fluxos do comércio internacional, dominados pelas necessidades do modo de produção e consumo dos países desenvolvidos, sobre o meio ambiente. No entanto, sendo um movimento que se caracteriza, essencialmente, pelo fluxo de importação de produtos no sentido Norte-Sul, o impacto ambiental acaba por ser inevitável, quer no que concerne ao consumo de combustível para transportar as mercadorias quer quanto à pegada ecológica. Nesta medida, o Comércio Justo não é um modelo consensual, nem mesmo entre os seus defensores e tem vindo a defrontar-se com desafios e contradições inerentes ao próprio movimento.

Há, efetivamente, um conjunto de questões de fundo que norteia o debate entre as diversas organizações que trabalham o Comércio Justo. Estas organizações seguem objetivos e metas distintos, assim como formas diferenciadas de o idealizar e materializar. Na sua origem, o Comércio Justo reproduz o modelo capitalista de divisão internacional do trabalho, situando a produção no Sul e a transformação e o consumo nos países do Norte. Mas, há organizações que se distanciam desta representação e que acreditam que uma cadeia comercial só é justa, equitativa e igualitária quando envolve trabalhadores e produtores tanto do Sul como do Norte do hemisfério. Coexistem, então, duas visões relativamente distintas de Comércio Justo: uma tradicional e dominante, que tem por base os princípios originalmente estabelecidos pelas organizações institucionais do movimento, e uma forma mais global e alternativa, cuja definição de Comércio Justo se funda na sua aliança com outros movimentos sociais que se opõem ao modelo de globalização neoliberal e na crença de que os critérios inerentes ao Comércio Justo devem estar presentes em todas as fases da troca comercial: produção, distribuição e venda.

Não obstante as suas diferenças, ambas as conceções de Comércio Justo são unívocas na procura por aliar a dimensão social e a dimensão económica nas relações comerciais através da promoção da ideia de que o comércio pode ser mais do que um negócio e de que é possível haver mais justiça nas relações comerciais. A sua estratégia passa por chamar a atenção para a necessidade de alteração das regras e práticas do comércio internacional, assim como por demonstrar que a atividade comercial pode ser viável, ainda que privilegie a dimensão social em detrimento da dimensão económica: “as pessoas antes do lucro” é a expressão mais idiomática no discurso das organizações e agentes de promoção do Comércio Justo.

Mais do que afirmar-se como uma mera atividade comercial, o Comércio Justo intenta demonstrar que é possível haver mais justiça nas relações comerciais e, para que tal se concretize, chama a atenção para a necessidade de se mudarem as regras e praxis do comércio internacional, demonstrando, pela prática, que um negócio pode subsistir, apesar de colocar as pessoas antes do lucro. Os consumidores justos comprometem-se com atos de consumo que perseguem uma transformação não só do modelo de consumo massificado como do próprio sistema de desenvolvimento e de produção vigente que coloca em risco a sustentabilidade ambiental e social. Imiscuindo-se no mercado, e uma vez estando dentro do sistema, pretende-se modificá-lo, quer colocando-se à margem do modelo de produção, de comercialização e de consumo dominante, criando um sistema comercial e de consumo alternativo.

No sistema comercial justo subsiste uma valorização simbólica das mercadorias, que espelha preocupações com os direitos dos trabalhadores, com as condições de vida dos pequenos produtores, a preservação do meio ambiente e as desigualdades provocadas pelos processos de globalização. Para aqueles que acreditam que ao adquirir um produto de Comércio Justo estão a contribuir para a diminuição das desigualdades provocadas pelos processos globalizantes e a disseminação dos valores tipicamente associados à racionalidade económica, o Comércio Justo representa um novo campo de possibilidades, de resistência aos poderes hegemónicos e simboliza uma nova forma de estratégia política: a compra de bens surge como um boicote às lógicas de mercado dominantes.

Os produtos de Comércio Justo, atualmente, graças a um sistema de certificação próprio, abandonaram o carácter comercial marginal das worldshops e marcam presença nos canais comerciais convencionais, como os supermercados. Por outro lado, a resistência das worldshops permanece como símbolo de luta contra o sistema comercial dominante. Nesta perspetiva, é possível concluir que o Comércio Justo combate o sistema dominante e as lógicas económicas hegemónicas, através de uma proposta de produção, de comércio e de consumo alternativos, instituindo um novo sistema económico e comercial, enquanto, por outro lado, procura imiscuir-se no próprio mercado que contesta, assumindo-se como uma alternativa dentro desse mercado e, em simultâneo, procura edificar um novo modelo para o mercado.

Referências bibliográficas:
Bécheur, A. e Toulouse, N. (2008), Le Commerce Équitable: entre utopie et marché, Paris, Vuibert.
Bucolo, E., et al, (2009), Commerce Équitable. Produire, vendre et consommer autrement, Paris, Éitions Sylepse.
Fridell,  G.  (2007),  Fair  Trade  Coffee:  The  Prospects  and  Pitfalls  of Market-Driven Social Justice, Toronto, University of Toronto Press.
Lecomte, T. (2004), Le Commerce Équitable, Paris, Eyrolles.
Low, W. e Davenport, E. (2005), “Has the Medium (roast) become the Message? The ethics of marketing fair trade in the mainstream”, International Marketing Revue, vol. 22, n.º 5, 494-511.