O Rapto da Europa

Por: Pedro Franco, Colaborador da FEC – Fundação Fé e Cooperação

Há pouco tempo estive a ajudar uma amiga moçambicana, residente em Portugal, a preparar o seu visto de visita ao Reino Unido. Perguntavam-lhe coisas como “Em que países esteve nos últimos 10 anos?”, “Quem é o proprietário da sua casa?”, “Quanto dinheiro pretende gastar?” e, finalmente, pediam-lhe uma espécie de carta-convite. Os custos ultrapassavam os 200€. Pouco habituado a estes processos complexos de aquisição de vistos, tive um vislumbre daquilo que pode ser o futuro da Europa a curto prazo, entre os atuais Estados-Membros e parceiros. Progressiva ou abruptamente, será que estamos preparados para regressar a uma Europa das nações?

Faço parte da geração dos 89ers, como lhe chama Timothy Garton Ash, historiador britânico e colunista do Guardian.[1] Garton Ash refere-se, evidentemente, à queda do muro de Berlim e ao desmantelamento pacífico do bloco soviético. Desde que nasci, não conheço outra coisa senão uma Europa de nações liberais ligadas entre si. Considerando os últimos 30 anos, ou seja, uma geração, à excepção da terrível guerra jugoslava e da Irlanda, que sou demasiado novo para recordar, não consigo nomear conflitos que tenham tido lugar recentemente no velho continente, nem regimes opressivos que ponham em causa os direitos mais básicos dos seus cidadãos. Isto, claro, se não contarmos com a Turquia, a Rússia e alguns ex-satélites da URSS, sobretudo as tensões sinistras na Ucrânia.

Para este argumento, o que importa é que a minha geração, dentro deste espaço único a que chamamos União Europeia (UE), nunca se sentiu insegura ou limitada pelo poder político para exercer os seus direitos fundamentais e, mais do que isso, exercer alguns deles no estrangeiro, tais como estudar, trabalhar ou mesmo votar ou ser candidato em eleições locais – friso, no estrangeiro. Há uma suposta lógica de progresso linear neste projeto de paz, através da cooperação, que facilmente me dá a ilusão de que muitas destas conquistas são irreversíveis. Não são. E onde a linha quebra é, entre outras coisas e para surpresa de muitos, no exercício da democracia. Foi o que pudemos comprovar, por exemplo, em 2016, com o referendo do Brexit.

Pela primeira vez, um Estado-Membro prepara uma saída da União, e não estamos a falar de uma aquisição recente ou de um Estado mais ou menos relevante: o Reino Unido soma contribuições significativas no orçamento europeu e 71 em 751 deputados num Parlamento à beira da implosão, sobretudo desde 26 de Maio de 2019. Com um Quadro Financeiro Plurianual para preparar e a iminente saída dos deputados verdes britânicos, que neste momento contrabalançam os avanços das forças eurocépticas, podemos questionar verdadeiramente o futuro da UE.

Não me foco no Brexit por qualquer tipo de obsessão com problemas extraordinariamente complexos, mas sim porque esta complexidade exemplifica bem o ambiente vivido na maior parte dos Estados-Membros e que todos conhecemos: uma desconfiança profunda nas instituições europeias e nas suas intenções. Aliás, muitos interpretaram o resultado do referendo do Brexit como tendo duas principais razões. A primeira seria a xenofobia, uma reacção de repulsa à imigração alegadamente facilitada pela UE: não só a dos polacos e dos cidadãos da Europa do Sul, mas de todo o tipo de migrantes. Isto é confirmado por estatísticas do NatCen Social Research Agency, que mostram como os britânicos se tornaram, entre 2002 e 2017, mais selectivos em relação aos seus migrantes, para não mencionar o cartaz do UKIP com o slogan “Take Control”, estrategicamente divulgado numa época de impasse da União sobre política migratória.

Esta xenofobia é certamente um problema grave nos diferentes Estados-Membros, mas discorrer sobre ela exigiria um olhar histórico sobre cada um deles. Não posso, é certo, deixar de notar que a política europeia está bem longe de ser uma política de portas abertas: até as políticas europeias de cooperação para o desenvolvimento têm como justificatória o estancamento das migrações, algo que se alastrou, nas eleições europeias de 2019, para o programa de partidos moderados em Portugal, incluindo o do partido vencedor. Preocupa-me particularmente que, quanto mais a União se torna numa fortaleza, mais os cidadãos anti-imigração parecem insensíveis à tragédia humanitária do Mediterrâneo. Aqui estamos a falar de um problema social e cultural, ao qual certamente o poder das instituições não é alheio, mas tampouco é suficiente. Não tenho dúvidas de que a xenofobia é combatida mais eficazmente a nível local.

A segunda razão apontada mais atrás, porventura mais interessante por ser estrutural, residiria numa incapacidade de comunicar os benefícios da política comunitária aos cidadãos, o que não é alheio ao velho adágio de que “as instituições estão muito distantes dos cidadãos” e de que “não são verdadeiramente democráticas”. Ora o exemplo do Brexit é interessante porque mostra, no absurdo das negociações de saída da União (querer p e não p), o oposto daquilo que os Brexiters defendiam, a saber, que a União é prejudicial para o Reino Unido. O Reino Unido, como podemos observar, está desesperado por tentar manter os seus principais parceiros comerciais que são, sem surpresa alguma, os países da União.

Sobre este tema da política comercial há n artigos, para além das previsões do governo britânico de que a economia do Reino Unido vai contrair em qualquer cenário de Brexit (com a política de Boris Johnson, em 6,3%). Não queria, por isso, deixar de sublinhar que a desintegração do mercado europeu é nada mais do que nefasta, não só no caso do Brexit e, no caso do Brexit, não só para o Reino Unido: Portugal, por exemplo, é extremamente dependente de Espanha, França e Alemanha, por esta ordem, sucedendo-se a estes parceiros justamente o Reino Unido. Estou longe de achar que a dependência de parceiros comerciais é uma coisa positiva, mas estou mais longe ainda de ver um mercado português isolado como um paraíso possível. Como português, não posso deixar de mostrar alguma ansiedade sobre invectivas isolacionistas que vamos ouvindo no nosso cenário político. Ainda que não seja um empresário, quero que o empresariado português possa contratar e exportar com facilidade e quero que este possa beneficiar de apoios do Estado (na maior parte dos casos, provenientes da UE); quero ter acesso seguro a bens básicos que Portugal não consegue produzir, confiante num equilíbrio entre a teoria das vantagens competitivas e o estímulo à produção local, e, seguramente, quero ter a certeza de que vou continuar a receber o meu salário em euros. Julgo que não sou o único com estas ambições de estabilidade.

O problema destes benefícios económicos da UE é que são dificilmente mensuráveis, ainda que claros. Ninguém duvida do aumento do poder de compra e da qualidade de vida em Portugal desde 1986, mas é impossível estabelecer um nexo de causalidade entre isto e uma política específica da União. Certamente haverá um caminho de desenvolvimento alternativo, dizem alguns. Na realidade, muito depende ainda das orientações políticas dos governos nacionais, o que responde em parte às acusações da falta de democracia do projeto europeu. Se em Portugal construímos demasiadas autoestradas, não gerimos bem os subsídios da agricultura ou “fomos além da Troika” e continuamos a fazê-lo, de certa maneira, fazemo-lo por opção dos nossos governos nacionais eleitos directa e democraticamente; se investimos mais ou menos na saúde ou na educação, setores críticos para o bem-estar da sociedade, continua a ser decisão do governo nacional.

No caso da austeridade, com a qual cresci, evidentemente que as orientações dadas pela Comissão Europeia e pelo BCE (para não falar do FMI) não foram de todo as mais adequadas, ao ponto de já termos ouvido um mea culpa de várias figuras da Troika, incluindo da sucessora de Mario Draghi, mas não nos podemos esquecer que as nomeações da Comissão e do Presidente do BCE são feitas pelos governos dos Estados-Membros, por maioria qualificada. A Comissão, inclusive, é votada pelo Parlamento Europeu eleito direta e democraticamente pelos cidadãos. Apesar da sua arquitectura institucional complexa e de muitas arestas para limar, como o processo flagrantemente falhado dos Spitzenkandidaten, seria injusto entender a UE como uma superestrutura totalmente antidemocrática. Não me revolta mais uma má decisão de Mario Draghi e dos seus técnicos do que a inoperância de um governador do Banco de Portugal: numa nomeação ou noutra, quem me representou foi o governo nacional. A verdadeira questão aqui é se queremos trabalhar com países com culturas e economias claramente diferentes. Quanto a esta matéria, não tenho grandes dúvidas: sou por um projeto de paz e cooperação. Estas têm de passar, como se diz hoje, por políticas de convergência.

A União não é perfeita e o projeto europeu é isso mesmo: um projeto, longe de uma linha terminal. Para reforçar o pilar da democracia, o Parlamento Europeu devia ter iniciativa legislativa, por exemplo, bem como um registo obrigatório para lobistas; para responder às alterações climáticas, podíamos caminhar no sentido de uma união energética rumo à neutralidade carbónica em 2050 (falta saber como será encetado o Pacto Verde Europeu); podíamos ser bem mais exemplares no respeito pelos direitos humanos seja na nossa política de migração, seja na fiscalização da ação de empresas transnacionais; etc. Podia enunciar várias mudanças que muitos cidadãos desejam e precisam, incluindo cidadãos não europeus, mas é certo que a UE está a percorrer um caminho que muito poucos Estados ou organizações internacionais estão dispostos a percorrer. A sociedade civil não deve baixar os braços, pelo contrário deve continuar a exercer pressão para que se atinja o desígnio da paz e, hoje mais do que nunca, de um desenvolvimento sustentável. Para isso, precisamos que a UE e a sociedade civil comuniquem.

Para além do que faz nas redes sociais (que, convenhamos, só pregam aos convertidos), francamente, não sei como é que a UE, a nível institucional, poderá comunicar a sua acção de forma expedita, mas sei que os políticos de cada Estado-Membro podiam fazer muito mais por elevar o nível do discurso quando falam sobre a União: não digo que tenham de elogiá-la, mas que façam por explicar o seu papel de forma clara nos diferentes temas que trazem para o debate público. Também o ensino de história e geografia devia dar um maior entendimento sobre história e política europeias. E as Organizações da Sociedade Civil deviam ser apoiadas e ouvidas, ao contrário do que acontece no momento presente. Só assim poderemos fazer frente aos populismos.

Regressamos ao argumento de que é a noção de uma certa irreversibilidade do projeto europeu que mais o prejudica. Nada está garantido. Neste momento, assistimos ao rapto da Europa: não só a nível de segurança, pelo afastamento dos E.U.A., que não sabemos se se manterá, mas sobretudo pelas forças populistas, que desejam o seu desmembramento. Como no fresco de Pompeia, vamos assistir, impávidos e serenos, ao sequestro?

 

Fresco de Pompeia, Casa di Giasone. I d.C, Museo Archeologico Nazionale di Napoli

[1] Timothy Garton Ash: “Why we must not let Europe break apart”, The Guardian, Thu 9 May 2019