Almerindo Fortes
Almerindo, 26 anos, é técnico de intervenção social da Fundação Santa Rafaela Maria, no bairro da Fonte da Prata, Moita, e está a iniciar uma horta comunitária. É um exemplo na comunidade de cuidado e respeito pelo lugar e por quem nele habita.
“Nem todos são chamados a trabalhar de forma direta na política, mas no seio da sociedade floresce uma variedade inumerável de associações que intervêm em prol do bem comum, defendendo o meio ambiente natural e urbano.”
(LS 232)
O espaço rural não é só o interior. Basta atravessar a ponte Vasco da Gama no sentido sul para compreender isso. Almerindo Fortes, de 26 anos, apresenta-se na horta do pai, onde têm uma plantação pequena, mas esplendorosa, onde encontramos milho e diversos vegetais e leguminosas. Estamos na Estrada das Formas, em Palmela, a cerca 5 quilómetros da Quinta Fonte da Prata, na Moita, o bairro onde Almerindo cresceu e trabalha. A sua família, originária de Cabo Verde, é o exemplo de uma cultura própria destas áreas periurbanas, onde a imigração e a agricultura, o urbano e o rural se confundem.
Na Península de Setúbal, para além da reconhecida produção vitivinícola e agro-pecuária, são inúmeras as pequenas explorações agrícolas, singulares e informais, sobretudo no concelho de Palmela. A ADREPES (Associação do Desenvolvimento Rural da Península de Setúbal) tem vindo a apoiar estes pequenos produtores, por exemplo, através da abertura de mercado com os cabazes PROVE: cabazes de fruta e hortícolas biológicos que são maioritariamente vendidos em Lisboa, com cada vez mais sucesso. No entanto, também na Moita e noutros concelhos adjacentes, encontramos várias hortas para autoconsumo instaladas em terrenos abandonados, de facto. São prova de resiliência de famílias com poucos rendimentos, que, com poucos recursos, cultivam terrenos férteis, seguros e inutilizados.
Almerindo Fortes sabe bem o que é trabalhar com poucos recursos, mas felizmente noutra perspetiva: não de total constrangimento social ou económico, mas de criatividade, tradição, aprendizagem e sustentabilidade. Se algumas das técnicas que põe em prática já as conhecia através da experiência familiar, como o cultivo de alho para evitar a mosca branca, prejudicial para a cenoura, agora aprende novas técnicas através de cursos de agricultura biológica, promovidos pela Câmara Municipal. Almerindo tem vindo a aplicar, por exemplo, a consociação de plantas para a proteção de pragas e doenças em alternativa à utilização de químicos nocivos. Se a família inicialmente manifestava algum receio em relação a estas novas práticas, pouco a pouco vão adotando os seus conselhos. Agora, compreendem, por exemplo, que o feijão, o milho, a abóbora e a cenoura juntos viçam em maior quantidade e qualidade. A complexidade, a diversificação (por oposição à simplicidade das monoculturas) cria mais sinergias: é mais produtiva. Isto tem resultados práticos na família de Almerindo: a maior parte dos vegetais que consome são da sua horta e há claramente uma diferença de qualidade. A agricultura biológica não é um luxo nem um exclusivo de elites.
Almerindo é técnico de intervenção social na Fundação Santa Rafaela Maria, uma Instituição Particular de Solidariedade Social presente na Quinta da Fonte da Prata há mais de 20 anos. A Fundação, da Congregação das Irmãs Escravas do Sagrado Coração de Jesus, acompanha as famílias do bairro, maioritariamente vindos dos PALOP, mas também de países do Leste Europeu e, mais recentemente, do Brasil. Por esse motivo, um dos serviços que prestam na Fonte da Prata é o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes, mas também têm um Gabinete de Inserção Profissional para jovens e desempregados, um Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas e um Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental. Tudo isto funciona numa loja, abaixo da casa onde residem, no meio do bairro. No mesmo quarteirão, noutra loja, funciona um projeto fundamental: o TASSE, um espaço de inclusão escolar, onde as crianças e jovens podem estar, receber apoio ao estudo e conviver num ambiente tranquilo. Almerindo foi uma das crianças apoiadas pelo TASSE. Diz-nos que “estes projetos ajudam a alargar horizontes. O projeto TASSE, por exemplo, tem levado bastante mais jovens da Fonte da Prata ao ensino superior.” Hoje, no seu trabalho, retribui o que lhe foi dado e inova.
“Estes projetos ajudam a alargar horizontes. O projeto TASSE, por exemplo, tem levado bastante mais jovens da Fonte da Prata ao ensino superior”
Tudo começou com o desporto. Os treinos de futebol, com o TASSE, ensinaram-lhe “a disciplina e o respeito”, que hoje tenta ele mesmo transmitir enquanto treinador. O curso profissional na área social ajudou-o nesse sentido, mas o foco já não é apenas o desporto. A Fundação está agora empenhada em recuperar o palacete devoluto próximo do bairro, cedido pela Câmara Municipal da Moita. Lá, terão mais espaço para acolher o crescente número de famílias que conta com o apoio da Fundação e terão mais condições para as atividades com as crianças. Almerindo decidiu juntar ao seu trabalho de intervenção social à agricultura, presente na sua vida desde cedo. Por isso, já está a desenvolver uma horta comunitária e pedagógica. Na horta, consegue “transmitir a importância do cuidado com a Natureza.” E está a resultar. “Apesar de ser difícil trazer os jovens no tempo escolar para a horta, há sempre grupos a vir.” Almerindo continua a ser um “miúdo do bairro”. Isso ajuda a que os jovens vejam que trabalhar na horta não é uma atividade estranha, mas não são só jovens e crianças a participar. Vários adultos juntam-se a qualquer dia da semana, com vontade de conhecerem as novas técnicas que Almerindo aprende nos cursos de agricultura biológica.
Dirigimo-nos ao camalhão que vai ser trabalhado hoje. No grupo, está um casal brasileiro, uma senhora moçambicana e quatro crianças com grande entusiasmo. Antes de porem as mãos na enxada, estudam a compatibilidade das plantas: alho-francês “não dá com ervilha e beterraba, mas dá com morango, tomate, aipo”. Esta semana semeiam o alho-francês junto à alface que já desponta da terra; para a semana também o alho-francês já estará a nascer. Aproveitam garrafas de plástico para fazer gotejadores, que irrigarão a terra até regressarem. No fim, recolhem todo o lixo para reciclar e preparam a compostagem. Almerindo ensina as crianças e adultos a melhorar a qualidade de vida, a poupar, a conhecer aquilo que se consome. “É possível fazer isto em casa. Não é preciso ter uma quinta.” Volvidos dois meses, regressamos à horta. Nesse dia soalheiro, o grupo duplica: acompanhamos um grupo de mais dez pessoas para fazer a monda. Não só havia alho-francês e alface, como cenoura, feijão, pimentos, favas, tomate, abóbora, couves.
Maria José Gonçalves ACI, irmã da Congregação e uma das gestoras deste projeto da Fundação, explica-nos que a produção que vimos, ainda incipiente e experimental, há de aumentar com os novos trabalhos, de maneira a que o excedente possa integrar o apoio alimentar às famílias, que já prestam a 60 famílias. Na prática, estão a fazer a transição de uma horta pedagógica para uma verdadeira horta comunitária. Com o apoio de algumas pessoas da zona e das suas empresas locais, bem como de jovens voluntários estão a preparar os novos terrenos disponíveis. Se tudo correr bem, em setembro de 2020 poderão distribuir cinco talhões pelas famílias que tenham mais necessidade e interesse. Por enquanto, o maior desafio prende-se com o aceso à água, que o tempo quente e seco de 2019 agravou. Para evitar soluções provisórias como as goteiras improvisadas e recurso a água potável da rede de abastecimento, será preciso adaptar as linhas de águas do terreno, fazer um furo e retirar a água do poço que já lá existia. Vários passos já foram dados nesse sentido. Desde janeiro de 2020 já há energia, com um gerador, para tirar proveito do poço. No fundo, como diz Maria José, todos estes trabalhos “vão buscar a memória do que existiu neste espaço.”
Almerindo e Maria José ACI não mencionaram a palavra agroecologia, mas é isso que está a despontar no bairro da Fonte da Prata: para além de um conjunto de técnicas agrícolas mais ecológicas, a agroecologia constitui-se como movimento de justiça social. No caso da horta comunitária da Fonte da Prata, os produtos agrícolas serão distribuídos por quem tem mais necessidade; todos podem participar e reconhece-se o valor intrínseco da Natureza. Iniciativas como esta mostram como é possível alimentar uma comunidade de forma sustentável, se houver capacitação, acompanhamento e disponibilização de terrenos. Mais do que mecanização ou transferência de tecnologia são necessários quadros humanos motivados e capazes de agregar uma comunidade. Que sirva de incentivo a novos programas municipais e nacionais de segurança alimentar e ordenamento do território dependerá da vontade política. Uma coisa é certa: o desejado esquema do “quilómetro zero”, como medida de ação climática, terá de olhar para estes exemplos.
Almerindo e Maria José ACI não mencionaram a palavra agroecologia, mas é isso que está a despontar no bairro da Fonte da Prata: para além de um conjunto de técnicas agrícolas mais ecológicas, a agroecologia constitui-se como movimento de justiça social. No caso da horta comunitária da Fonte da Prata, os produtos agrícolas serão distribuídos por quem tem mais necessidade; todos podem participar e reconhece-se o valor intrínseco da Natureza. Iniciativas como esta mostram como é possível alimentar uma comunidade de forma sustentável, se houver capacitação, acompanhamento e disponibilização de terrenos. Mais do que mecanização ou transferência de tecnologia são necessários quadros humanos motivados e capazes de agregar uma comunidade. Que sirva de incentivo a novos programas municipais e nacionais de segurança alimentar e ordenamento do território dependerá da vontade política. Uma coisa é certa: o desejado esquema do “quilómetro zero”, como medida de ação climática, terá de olhar para estes exemplos.
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em destaque:
2.1. Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os mais pobres e pessoas em situações vulnerável, incluindo crianças, a uma alimentação de qualidade, nutritiva e suficiente durante todo o ano.
2.4 Até 2030, garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às alterações climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo.
4.7 Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de género, promoção de uma cultura de paz e da não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável.
6.4 Até 2030, aumentar substancialmente a eficiência no uso da água em todos os sectores e assegurar extrações sustentáveis e o abastecimento de água doce para enfrentar a escassez de água, e reduzir substancialmente o número de pessoas que sofrem com a escassez de água.
8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens sem emprego, educação ou formação.
11.3 Até 2030, aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, e as capacidades para o planemento e gestão de assentamentos humanos participativos, integrados e sustentáveis, em todos os países.
12.8 Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e consciencialização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.