Andrade Guarda

Andrade, 40 anos, dedica-se à bioconstrução para casas mais resilientes em Cabo Delgado e, em Maputo, na residência artística da Mozarte, fabrica artesanato com materiais locais. O seu sonho é que a Agenda 2030 se comece a cumprir desde já.

“Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e grupos que são capazes de dar a volta às limitações do ambiente, modificando os efeitos adversos dos condicionalismos e aprendendo a orientar a sua existência no meio da desordem e precariedade.”

(LS 148)

Andrade Guarda tem um sonho desde a infância: construir casas com as suas próprias mãos. Foi desde cedo que viu o pai a trabalhar com materiais locais e sustentáveis. Ergueu uma casa sozinho pela primeira vez aos quinze anos e a sua casa de hoje, em Cabo Delgado, donde é natural, foi feita dessa forma, com barro. “Quando pego no barro, sinto que estou a mexer com o meu corpo, a minha estrutura. Pegar no que é nosso, tocar na nossa ancestralidade é uma forma de desafiar este modelo de globalização.” O seu principal interesse é a bioconstrução, ou seja, o uso de materiais vivos para construções resilientes.  O seu interesse é tal que encontrou a oportunidade de estudá-la no Rio de Janeiro. Neste momento, encontra-se a escrever uma monografia sobre o tema, tendo como referência a Agenda 2030. Confessa que poucos conhecem ainda o conceito e o valor de bioconstrução: “Muitos julgam que as casas de barro e palha são precárias, mas são, na realidade, mais resilientes. A Agenda 2030 fala especificamente de casas com materiais vivos, mas as pessoas só procuram cimento, zinco e tijolo. Há poucas pessoas para encaminhar as comunidades. Só juntos podemos mudar o processo, por isso temos de trabalhar na educação.”

Aliado ao seu trabalho teórico, Andrade está a fazer pesquisa prática sobre materiais locais, na Mozarte, uma associação juvenil que promove o artesanato nacional, apoiada pelo Instituto Nacional da Juventude, e resultado de um projeto da UNESCO. Em Maputo, foi um amigo que lhe indicou a possibilidade de uma residência artística e Andrade não hesitou: escreveu uma carta de motivação ao diretor da associação, apresentou o seu plano de monografia e foi aceite. Começou no verão de 2019 e tem agora o seu espaço, onde também dinamiza oficinas para jovens. O objetivo da Mozarte é reunir artistas das várias regiões de Moçambique e pô-los a trabalhar juntos. “Não há tribalismo na Mozarte. Aqui estou feliz. Posso desenvolver o meu trabalho, aprender e ensinar.” A Mozarte oferece o espaço, o material e investe na educação. É uma janela fundamental, porque os artistas têm poucas infraestruturas e combate-se, desta forma, a pobreza.

Encontramo-lo numa manhã nublada junto à mesa de trabalho, no alpendre. Está ocupado a fazer cadeiras de bambu. Conta-nos que pediu este material a um senhor que, doutra forma, o queimaria. Também está a trabalhar com dois tipos de barro. Por vezes usa pedra, capim, cal. São materiais de baixo custo, fácil acesso e, amiúde, gratuitos. São sustentáveis, ao contrário, por exemplo, do cimento, cuja produção é responsável por cerca de 8% de CO2 a nível global. Andrade tem a certeza de que se pode transformar tudo o que se tem à disposição. Muitas vezes reutiliza também cordas de pneus e trabalha com tintas ecológicas. “Infelizmente muitos sonham com aquilo que outros têm, mas não é real, não é adaptável.” O seu trabalho é, de facto, uma missão de autossuficiência: “A gente tem medo de crescer, mas podemos crescer com criatividade, não só com dinheiro. Os artistas aqui só pedem dinheiro. Não é preciso pedir financiamento para criar. É preciso criar para pedir financiamento. O financiamento que eu peço vai para as comunidades. Essa é que é a ideia de desenvolvimento.” Na sua visão, consegue-se ser criativo se se revisitar as tradições, e, por isso, é tão importante o diálogo com as comunidades nas línguas locais.

Está a fazer oficinas com crianças e também junto das comunidades em Cabo Delgado e noutras províncias. O seu sentido de urgência é forte: “Para mim as metas da Agenda 2030 são já para amanhã. Não podemos perpetuar os modelos de desenvolvimento que pretendem imobilizar as comunidades”. Refere que a bioconstrução é uma alternativa ao uso de materiais que, não raras vezes, obrigam a créditos nos bancos. “Muitas vezes as comunidades acabam por vender a sua própria terra para pagar a dívida. Precisamos de outra modalidade de crédito, mas para já é possível fazer doutra forma.” Diz que nas comunidades também aprende técnicas locais, que levou para o Brasil, e a aprendizagem é mútua: quando o ciclone Kenneth passou em Cabo Delgado, em abril de 2019, algumas pessoas ligaram-lhe a agradecer o que aprenderam com ele, pois as suas casas resistiram. Isto leva-o a concluir que “a resiliência só surge quando lançamos projetos conjuntos.” O uso de materiais como barro e bambu é comprovado: muitas destas casas, ao contrário das de cimento e zinco, resistiram à passagem dos ciclones de 2019. “O barro é mais resistente porque respira. O capim respira, o zinco não.” Tanto é, que é reconhecido pelo Programa UN-Habit como parte da “arquitetura para a redução de risco de calamidades”. Como nota o relatório homónimo, a construção “adaptativa” acaba sempre por ser mais barata do que a reconstrução de infraestruturas.

“A gente tem medo de crescer, mas podemos crescer com criatividade, não só com dinheiro”

Andrade conta que nestas comunidades são preservadas algumas crenças de maldição: os ciclones ou as cheias que apodrecem as machambas são, para muitos, vingança dos espíritos. Andrade tenta explicar-lhes do que se trata na realidade, e a conversa leva-nos naturalmente ao problema das alterações climáticas. Andrade confidencia que é difícil comunicar o que são as alterações climáticas nas línguas locais (suaíli, maconde, macua) onde estas expressões não existem. Queixa-se também da confusão recorrente dos termos: reutilização, reciclagem, separação…, mas os problemas são cada vez mais tangíveis. Com preocupação, conta-nos que em Cabo Delgado já não é anormal as temperaturas atingirem os 45ºC e que em dezembro já não chove. “Chove mais em janeiro. Já não há tempo certo para começar as sementeiras. Como não há época certa, a fome cresce. Temos de lutar pelo meio ambiente que é nosso. Há também muitas empresas estrangeiras, chinesas por exemplo, que estão a esgotar os nossos recursos, a nossa floresta, para replantar nos seus países as nossas espécies. Em Cabo Delgado, já não há pau preto, mangal. Isto cria enormes problemas de segurança para as habitações: as águas sobem, provocam-se inundações. Foi isso que aconteceu na Beira. Na Beira cortaram o mangal que protege as casas. Não é Deus. Somos nós que nos estamos a prejudicar.” Sugere que se plante mais bambu: cresce rápido, é local, rentável e ecológico. Não precisa de pesticidas ou fertilizante. Cresce naturalmente. Já o mangal deve ficar intacto: “Temos de preservar as espécies para os nossos filhos e não podemos tampouco prejudicar os nossos vizinhos. O mundo é uma família.”

A nossa conversa regressa sempre à importância fulcral da educação: “Para atingir 2030, temos de trabalhar na educação, com crianças. Se não o fizermos, nenhuma meta será atingida. Temos de ser nós, jovens, a começar este processo criativo. O que encontramos nas comunidades são crianças que nos dizem ‘estou a pedir, estou a pedir. Está a pedir, mas pode criar.’ A criança tem de estar no processo da construção, mesmo que seja só com um bocado de barro na mão. A gente guarda na memória e aprende a partilhar. A educação é assim, como uma escada.” Fala-nos de tantos moçambicanos que querem estudar, no ensino superior, finanças e economia. Na sua opinião, não se estimula a criatividade, “não interessa ter dinheiro só para comprar coisas de fora.” Também a forma como se tratam os resíduos é problemática para Andrade: diz que se vê muito lixo no chão, muitos sacos de plásticos. “Podemos fazer sacos de silha, cestas de material local, como já fazem algumas comunidades em Cabo Delgado. Não é um negócio, é um processo essencial Não podemos estimular as indústrias a produzir mais aquilo que nos faz mal. Temos de exigir estas mudanças.” É que os resíduos não são só um problema em si. O lixo também emite metano. Por isso, está a experimentar introduzir biodigestores nas comunidades, fornos com barro e com lixo, para cozinhar.

Conta-nos algumas das suas dificuldades: a falta de material na cidade e algumas expetativas desajustadas dos fornecedores informais. Estes pensam, por vezes, que Andrade é um industrial com fins lucrativos. Pelo contrário, diz-nos que trabalhar com estes materiais, para além de ser como um “regresso à infância, uma meditação”, é também um benefício social: na cidade, vende camas, por exemplo, a 3.000 meticais (cerca de 40 euros), quando o preço comum ronda os 15.000 meticais (cerca de 204 euros). Tem organizado feiras com a Mozarte no local e fora de Maputo, e o seu sonho é fazer uma com as comunidades do Norte, um intercâmbio em que possam vender, comprar e sobretudo aprender mutuamente. Tem um filho a terminar a escolaridade, que lhe está a seguir as passadas. Será esta a geração que vai mudar o conceito de “material convencional”?

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em destaque:

1.5 Até 2030, aumentar a resiliência dos mais pobres e em situação de maior vulnerabilidade, e reduzir a exposição e a vulnerabilidade destes aos fenómenos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres económicos, sociais e ambientais.

4.b Até 2020, ampliar substancialmente, a nível global, o número de bolsas de estudo para os países em desenvolvimento, em particular os países menos desenvolvidos, pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países africanos, para o ensino superior, incluindo programas de formação profissional, de tecnologia da informação e da comunicação, técnicos, de engenharia e programas científicos em países desenvolvidos e outros países em desenvolvimento.

8.6 Até 2020, reduzir substancialmente a proporção de jovens sem emprego, educação ou formação.

11.1 Até 2030, garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, e aos serviços básicos, e melhorar as condições nos bairros de lata.

11.4 Fortalecer esforços para proteger e salvaguardar o património cultural e natural do mundo.

12.5 Até 2030, reduzir substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e reutilização .

13.1 Reforçar a resiliência e a capacidade de adaptação a riscos relacionados com o clima e as catástrofes naturais em todos os países.

13.3 Melhorar a educação, aumentar a consciencialização e a capacidade humana e institucional sobre medidas de mitigação, adaptação, redução de impacto e alerta precoce no que respeita às alterações climáticas.

17.9 Reforçar o apoio internacional para a implementação eficaz e orientada da capacitação em países em desenvolvimento, a fim de apoiar os planos nacionais para implementar todos os objetivos de desenvolvimento sustentável, inclusive através da cooperação Norte-Sul, Sul-Sul e triangular.

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Esta publicação é produzida no âmbito do projeto Juntos pela Mudança II – Ação conjunta pela sustentabilidade e resiliência nos estilos de vida e políticas nacionais e globais – implementado em Portugal pela Fundação Fé e Cooperação, a Associação Casa Velha e a CIDSE.

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