VI(R)AGENS

Caminhos de conversão ecológica

“A estrutura política e institucional não existe apenas para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas, estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas pessoais e coletivas.” (LS 177)

percurso

Para uma crise sem precedentes, “[p]ara se resolver uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo atual, não basta que cada um seja melhor. A conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária.” (LS 219). A nossa procura de histórias de pessoas e comunidades resilientes insere-se num desígnio maior, de que os Estados e os diferentes setores da economia se organizem como uma grande comunidade internacional na defesa da nossa Casa Comum. A transposição das dinâmicas locais para as grandes estruturas requer, certamente, habilidades particulares e técnicas. Da nossa parte, reconhecemos e apontamos para a importância de ir às periferias e, segundo esse princípio, desenhámos o nosso percurso na ótica da cidadania global, entre Portugal e Moçambique. Referimo-nos às injustas divisões Sul e Norte globais mas também às periferias geracionais, urbanas e rurais, de género e de setores, no sentido da responsabilização. Damos voz a associações locais, organizações não-governamentais, associações empresariais, movimentos de contestação civil, pequenos agricultores e comunidades de inspiração religiosa.

Em Portugal, escolhemos a Península de Setúbal como foco por se verificarem, já aí, novos modelos de consumo e produção sustentáveis, pelo acesso de pequenos produtores agrícolas ao mercado das grandes cidades. No entanto, estas novas dinâmicas entre campo e cidade estão comprometidas pelas alterações climáticas e a Península de Setúbal é uma região especialmente vulnerável: segundo o Instituto Mundial de Recursos, Setúbal é o distrito de Portugal com stress hídrico mais elevado, com tendência para aumentar. As zonas costeiras, que já enfrentam galgamentos e inundações em zonas densamente povoadas, terão de fazer face a tempestades mais frequentes e ao aumento de dois metros do nível do mar em 50 anos, como indica o Plano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa. Face a estas consequências, na mesma região põem-se em risco sumidouros de carbono vitais, como as pradarias marinhas do estuário do Sado, ameaçada pelas dragagens para expansão do porto, e o Parque Natural da Serra da Arrábida, onde se encontram pedreiras a céu aberto e aterros ilegais de resíduos.

Por todos estes motivos, e porque tudo está interligado, decidimos procurar jovens ativistas da região que nos relembrem da nossa dependência da terra; que nos relembrem também de como é possível encontrar modelos sociais e económicos mais harmoniosos, a nível local e global. Foi assim que encontrámos o Bairro da Fonte da Prata e a Fundação Santa Rafaela Maria, um projeto social bem assente onde se inicia uma horta comunitária, e a Matilde Alvim, co-organizadora da Greve Climática Estudantil e residente na Serra do Louro. A terceira história que apresentamos em Portugal sai desta região, mas apresenta um retrato de verdadeira cidadania global: a Inês Amorim é luso-angolana e trabalha numa associação que integra a maior organização internacional a trabalhar na área do desenvolvimento sustentável: o World Business Council for Sustainable Development.

Em Moçambique, percorremos dois mundos abismalmente diferentes, a cidade de Maputo e a província do Niassa, mas em ambos os lugares encontramos sinais preocupantes. Ao chegarmos a Maputo, apercebemo-nos de como o desenvolvimento de Moçambique está a confiar na exploração de recursos fósseis: pelo aeroporto e pela cidade multiplicam-se os cartazes da Exxon a sugerir que “petróleo e gás fazem o país avançar”. Estas explorações, de uma joint venture em que se incluem empresas portuguesas e moçambicanas, têm lugar na província de Cabo Delgado, em Rovuma. Também no Norte de Moçambique se tem vindo a desenvolver o Corredor Logístico de Nacala: neste porto de águas profundas da província de Nampula chegam agora os comboios da linha férrea recuperada com o apoio da brasileira Vale, que explora 18 milhões de toneladas carvão nas minas de Moatize, em Tete. Esta linha também se estende ao Niassa, onde, à semelhança de outras regiões no centro e norte do país, têm vindo a crescer as monoculturas sobretudo de pinho e eucalipto, que põem em risco a agricultura de subsistência. Ao todo, estas explorações acumulam 1.4 milhões hectares. Como alegam vários relatórios e reportagens, tanto em Cabo Delgado, como no Niassa, as comunidades locais nem sempre são consultadas quanto aos Direitos ao Uso e Administração das Terras (DUAT), ou não estão preparadas para este tipo de consulta, pondo em causa a sua sobrevivência.

No sexto país mais pobre do mundo, segundo dados de 2018 do FMI, onde mais de 70% da população não tem eletricidade, não se compreende como esses dividendos serão alguma vez distribuídos, nem como protegerão Moçambique, um dos países mais vulneráveis às alterações climáticas: segundo dados do PNUD divulgados pela USAID, mais de 60% da população vive em zonas costeiras, e mais de 70% da população depende de agricultura sensível ao clima, dispondo de menos de 1,90USD por dia. De acordo com dados do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades de 2017, divulgados pela Livaningo, em 20 anos, mais de 8 milhões de moçambicanos foram afetados por desastres naturais causados por fenómenos naturais (sobretudo inundações, secas e ciclones). Isto não contabiliza as vítimas dos ciclones Idai e Keneth, de 2019, que se estimam entre os 2.5 milhões de pessoas só em Moçambique. Face a este cenário desanimador, encontramos, felizmente, vários moçambicanos resilientes e dispostos a advogar pela mudança de paradigma.

De passagem por Maputo, a região mais desenvolvida do país, tivemos a oportunidade de conhecer a associação Mozarte, parceira da FEC, onde trabalha em residência artística o artesão e ativista Andrade Guarda, promotor convicto da Agenda 2030. Também em Maputo, fomos recebidos por Manuel Cardoso, da Livaningo, uma Organização não Governamental Ambiental (ONGA) moçambicana bastante ativa e com presença nos fóruns internacionais, e que nos apresentou a um dos produtores de fogões melhorados que tem vindo a apoiar, o senhor Alberto Maluana. Na província do Niassa, por contraste, a região mais periférica do país, descemos primeiro de Lichinga a Massangulo, no distrito de Ngauma, onde se encontra a missão centenária dos Missionários da Consolata, um lugar remoto de extrema beleza. Aí encontrámos o Pe. João Nascimento e uma comunidade pacífica, onde a luta contra a pobreza coincide com a valorização dos recursos naturais. Seguimos para Cuamba, “capital do algodão”, onde conhecemos Paulino Paissone, produtor agrícola e parceiro da FEC na supervisão das Escolinhas Comunitárias do Niassa, que, ao todo, acolhem mais de 1.000 crianças na província. Todos eles mostram-nos, ao mesmo tempo, o mundo como ferida e como dom; as incoerências de algumas políticas; as necessidades de cada contexto e os caminhos para um mundo mais justo e sustentável, onde tudo está ligado e ninguém fica para trás.

Esta publicação é produzida no âmbito do projeto Juntos pela Mudança II – Ação conjunta pela sustentabilidade e resiliência nos estilos de vida e políticas nacionais e globais – implementado em Portugal pela Fundação Fé e Cooperação, a Associação Casa Velha e a CIDSE.

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