VI(R)AGENS

Caminhos de conversão ecológica

recomendações

Findo o percurso, é inevitável regressar às assimetrias de desenvolvimento. Não é possível deixar de contrastar as dificuldades desproporcionais que encontramos em Moçambique por oposição a Portugal. Referimo-nos não só à maior vulnerabilidade, falta de acompanhamento estruturado e dificuldade da maior parte da população em aceder, aproveitar e preservar os recursos naturais e bens essenciais, mas também, à sociedade civil organizada, no que diz respeito à receção de apoios institucionais, seja em financiamento, seja em formação, valorização e acompanhamento das suas atividades: pense-se, por exemplo, na forma como Andrade Guarda está praticamente sozinho a tentar revolucionar a construção de casas resilientes em várias províncias; ou Paulino Paissone a trabalhar uma terra seca sem capacidade para fazer frente à praga da lagarta do funil de milho; ou como a Livaningo desempenha um papel fundamental num país com tanto potencial energético, mas com políticas pouco estratégicas para o desenvolvimento sustentável. Isto não quer dizer, evidentemente, que no mundo dito “desenvolvido” não haja falta de apoios institucionais para a adoção de políticas de resiliência e ação climática: essa é, justamente, a razão que leva a Matilde Alvim e a Inês Amorim a participarem nos movimentos de contestação em Portugal, face às metas que consideram pouco ambiciosas, às prospeções de combustíveis fósseis e aos programas de transição energética pouco claros, nomeadamente para os trabalhadores; e por outro lado, comunidades como a do Almerindo e a de Massangulo a investirem na agroecologia e a reconhecerem o “capital natural”, apesar de as estratégias nacionais só agora começarem a despertar para esta realidade.

 

Muitas vezes, os problemas extravasam os âmbitos municipais, nacionais e regionais e implicam teias de negociações complexas. Por esse motivo, é preciso enquadrar os nossos esforços no contexto político mais vasto, mas também é necessário preservar uma política assente na realidade. Se queremos enfrentar a crise climática, e as suas consequências atuais e futuras, temos não só de olhar para os números e para as necessidades dos mais vulneráveis, mas também para a chave de respostas que encontramos em vidas resilientes como estas aqui apresentadas, profundamente alinhadas com as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Assim, estruturamos as nossas recomendações nos cinco parâmetros da Agenda 2030: Pessoas, Prosperidade, Parcerias, Planeta e Paz. Dirigem-se a diferentes instâncias: às instituições das Nações Unidas, às políticas comunitárias da UE, ao Estado Português, aos municípios, ao setor privado e à academia, bem como aos cidadãos.

PESSOAS

  • Reconhecimento de que todos os setores devem ser envolvidos para o nexo ação climática / desenvolvimento, numa lógica participativa e democrática, a partir das bases e atenta às especificidades regionais e às periferias: pense-se no potencial da construção adaptada e das soluções agroecológicas para os pequenos agricultores do Niassa e de Portugal.

  • Investimento em empregos verdes, requalificação de trabalhadores para a transição energética e investimento nos pequenos produtores agrícolas e soluções agroecológicas, seja em política doméstica, seja em política de cooperação.

  • Alargamento da rede elétrica limpa nos países menos desenvolvidos e eletrificação dos transportes, em todos os países, melhorando as redes de transportes públicos.

  • Aproveitamento do potencial dos materiais locais em construções resilientes, adaptadas à realidade local.

  • Qualificação e formação contínua de quadros humanos e líderes que contribuam para ações e políticas promotoras do equilíbrio ecológico.

PROSPERIDADE

  • Inteligência para colocar o bem-estar e não só o lucro no centro das atividades e políticas económicas, como exigem a Greve Climática e organizações como a Livaningo ou a Carta de Princípios do BCSD.

  • Desinvestimento maciço da indústria fóssil e aplicação efetiva e aumento das taxas de carbono, acompanhados de políticas fiscais que tenham em vista 100% de energias renováveis. Para além do princípio do poluidor-pagador, a ser aplicado, destacamos o incentivo do mercado de obrigações verdes (green bonds).

  • Exigência de contrapartidas das empresas onde será injetado capital, como medidas de recuperação económica face à crise provocada pela pandemia do coronavírus.

  • Reflexão do capital natural e humano no PIB ou através da adoção de um indicador complementar que meça também o grau de desenvolvimento sustentável.

  • Aumento da reciclabilidade e duração de vida útil dos produtos, investindo na economia circular.

  • Mais previsibilidade, coordenação e transparência do apoio financeiro, capacitação e transferência de conhecimento e tecnologia para os países em desenvolvimento, assegurando também que os financiamentos não contribuem para o agravamento da dívida dos países mais pobres. Os Planos Nacionais de Adaptação definidos pelos países menos avançados devem ser financiados. (Cf. Magalhães Ferreira, 2018, coerencia.pt)

PARCERIAS

  • Investimento no trabalho comunitário, associativo e cooperativo, em todas as esferas e com transparência, como é o caso, a níveis diferentes, do BCSD, da residência artística da Mozarte, da Fundação Santa Rafaela Maria, dos coletivos da Inês e da Matilde, ou o apoio da Livaningo aos produtores de fogões melhorados.

  • Cooperação entre universidades do Norte e Sul Global, cooperação Sul-Sul e instituições internacionais como a FAO. Pense-se no potencial das Escolas da Machamba do Camponês e de como poderiam beneficiar faculdades de agronomia, como a de Cuamba, para fazer face aos efeitos das alterações climáticas e às pragas cada vez mais nefastas, imprevisíveis e frequentes.

  • Transversalidade do tema das alterações climáticas na generalidade dos cursos do ensino superior, particularmente nas áreas de economia, gestão e engenharias.

  • Alargamento do compromisso com os Science-Based Targets e, em Portugal, com o Roteiro de Neutralidade Carbónica, para o setor privado. Acompanhamento e monitorização transparente destes processos, reconhecendo a descarbonização como fator de simultânea competitividade e cooperação.

  • Reforço de instrumentos legais que eliminem o conflito de interesses na contratação pública, desclassificando empresas com investimentos em combustíveis fósseis, sobretudo no âmbito do desenvolvimento sustentável.

PLANETA

  • Uma política global que verdadeiramente não deixe ninguém para trás. Aqui importa referir a importância de não inflacionar os fundos de desenvolvimento, como nota a CONCORD, e a recusa do greenwashing nas grandes políticas públicas, como o Pacto Verde Europeu. Apesar de geralmente já não se contabilizar fundos de ação climática como Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), esta tem vindo a diminuir desde 2018 e ainda é inflacionada através de outros fundos pré-existentes. (Cf. CONCORD, 2019)

  • Financiamento mais robusto para o Pacto Verde Europeu: o bilião de euros apresentado pela Comissão Europeia em dezembro de 2019 confia tanto em investimento privado incerto como consome outros fundos europeus pré-existentes. Esta verba contém, aparentemente, apenas 7.5 mil milhões de euros de novo investimento comunitário, que consiste no Mecanismo de Transição Justa. Neste momento, fica aquém da resposta dada à crise das dívidas soberanas na qual, entre 2009 e 2013, 1.6 biliões foram canalizados para bancos e, entre 2015 e 2018, 2.6 biliões foram impressos pelo Banco Central Europeu.

  • Exige-se que este Mecanismo de Transição Justa apoie as economias europeias mais estagnadas, para além das economias mais dependentes de carbono.

  • Complementaridade das políticas do Pacto Verde Europeu com o Plano de Recuperação Económica da UE a ser implementados como resposta à crise provocado pela pandemia do coronavírus. Manutenção de políticas coerentes com o Acordo de Paris e os ODS, e em Portugal com o Roteiro da Neutralidade Carbónica, aumentando a ambição dos níveis de descarbonização para 2030.

  • Reajustamento das metas de descarbonização, de forma a que se refiram ao ano com menor nível de emissões, como o IPCC faz a nível global. Este não é o caso da UE, nem de Portugal, que adotam 1990 e 2005 como referência, respetivamente.

  • Inclusão dos impactos das políticas europeias nos países do Sul Global, nas suas fases de planificação, implementação e avaliação.

  • Adoção do princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas e respetivas capacidades, expresso no Acordo de Paris (artº 2, nº 2): os países desenvolvidos devem promover metas mais ambiciosas do que as metas a nível global.

  • Implementação de acordos globais em setores preponderantes para as alterações climáticas, como a aviação internacional e o transporte marítimo, com orientações e metas definidas, bem como aplicar de forma mais abrangente e integrada mecanismos já existentes – por exemplo no âmbito da proteção das florestas (REDD+). (Cf. Magalhães Ferreira, 2018, coerencia.pt)

  • A arquitetura global de financiamento climático deve simplificar-se, concentrando a maior parte dos fundos no Fundo Verde do Clima e assegurando um equilíbrio entre o financiamento da mitigação e da adaptação. (Cf. Magalhães Ferreira, 2018, coerencia.pt)

  • Estabelecimento de um roteiro concreto para assegurar a realização do compromisso de afetação de 100 mil milhões de dólares por ano à ação climática e encontrar uma forma de envolver o setor privado neste financiamento. (Cf. Magalhães Ferreira, 2018, coerencia.pt).

PAZ

  • Fim da cultura extrativa que coloca em risco a vida das comunidades vulneráveis, nos países menos desenvolvidos.

  • Exigência legal da responsabilização social e ambiental das empresas, que por enquanto é apenas facultativa e estratégica, e respetiva monitorização obrigatória das suas atividades e externalidades em países menos desenvolvidos.

  • Adiantamento, a níveis nacionais, da proposta das Nações Unidas de um acordo juridicamente vinculativo sobre respeito dos Direitos Humanos nas atividades empresariais, em todos os sectores e em toda a cadeia de valor, tendo como exemplo a lei europeia da exploração de metais raros, de 2017, ainda que esta apresente lacunas significativas.

  • Inclusão do nexo entre desequilíbrios ecológicos e deslocações forçadas nas jurisdições nacionais e internacionais sobre migrações e refugiados e consideração do estatuto de refugiado climático, como propõe a Livaningo, outras Organizações da Sociedade Civil pelo mundo e mesmo o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

  • Consenso na área das perdas e danos, nas negociações no âmbito do UNFCC, de modo a pagar a “dívida ecológica” que refere o Papa Francisco. Apesar de pouco consensual, ao contrário de outras dívidas históricas, estas perdas e danos são atuais, urgentes e traçam-se a uma responsabilidade histórica do Norte para com o Sul Global.

  • Mudança radical na educação das novas gerações, para que se adaptem às mudanças que terão lugar e para que aprendam a reconhecer a nossa dependência de ecossistemas saudáveis. Assim se faz tanto no Norte, como no Sul Global, tanto o Almerindo, na Fonte da Prata, como a Missão da Consolata, a Livaningo ou o Andrade Guarda.

SUGESTÕES CÍVICAS E UNIVERSAIS

1. Reconhecer que um futuro com acção climática não requer sacrifícios, antes nos propõe um melhor modo de vida: com distribuição de trabalho mais justa, menos problemas de saúde pública, transportes mais eficazes, maior segurança de investimento, para nomear algumas vantagens evidentes.

2. Informar-se junto de fontes fiáveis, sempre! Diante de qualquer notícia, basta fazer uma pergunta para confirmar a sua veracidade e, aliás, para a compreender melhor.

3. Conhecer e fazer parte dos movimentos cívicos pacíficos e que vivem da esperança: das manifestações às petições, das hortas comunitárias ao “artivismo”, tudo é válido desde que seja construtivo.

4. Consumo responsável e coerente, baseado na segunda sugestão: essa é a chave, porque não há um manual exaustivo de como se comportar ecologicamente. A conversão ecológica mais eficaz é aquela que se avalia todos os dias, neste mundo em constante mudança, e, como na terceira sugestão, que se faz apoiar por uma comunidade.

Pode ser que, desta forma, estejamos atentos a mais histórias de conversão ecológica ou, então, que nós mesmos as protagonizemos. Isso não é só ideal: é muito urgente.

Esta publicação é produzida no âmbito do projeto Juntos pela Mudança II – Ação conjunta pela sustentabilidade e resiliência nos estilos de vida e políticas nacionais e globais – implementado em Portugal pela Fundação Fé e Cooperação, a Associação Casa Velha e a CIDSE.

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